segunda-feira, 29 de junho de 2009

Amarga vida (crônica)

Um amigo meu tem um pequeno restaurante na cidade. Desses botecos que proliferam aqui e ali, apertados e sufocantes. Mede cerca de vinte metros quadrados. Quando o dono sai do cubículo que o separa do público, sempre aparece alguém para ocupar o seu lugar. Igual à situação do sujeito que, em meio a uma multidão de pessoas, não encontra mais desocupado o local de onde tirara o pé que doía sob o peso do corpo.

No restaurante desse meu amigo é assim. As pessoas chegam a brigar por um espaço em que possam ajustar-se melhor. Não é porque o movimento seja intenso; não, nada disso; é por ser pequeno mesmo.

As mesas em que são servidas as refeições ficam do lado de fora, sob uma marquise que a síndica do prédio aluga a peso de ouro, elevando os custos do reduzido negócio.

Conheço bem o lugar: os três frízeres, o fogão de quatro bocas, do tipo industrial, e a pequena pia em que são cortadas as carnes, preparados os pratos e lavada a louça do movimento diário.

Fui contador na vida profissional, por isso, gozo de certa intimidade com as dificuldades financeiras e de organização dos pequenos estabelecimentos.

As de natureza pecuniária são as piores.

O restaurante desse meu amigo, como negócio, sofre de mal crônico. Nunca proporciona ao proprietário alguma sobra de dinheiro. Ele está constantemente endividado, ameaçado de cerrar as portas ou à espera de que fulminante infarto ponha fim à sua vida, aos quarenta e quatro anos de idade.

Não é para menos.

Com freqüência, os credores batem à sua porta exigindo-lhe a quitação das dívidas, anteriormente saldadas com cheques pré-datados, sem fundos, recebidos de clientes de caráter duvidoso.

Hoje, vejo esse amigo em situação desesperada. O negócio quase falido, excessivamente tributado pelo Estado ganancioso, as finanças a zero, as dívidas crescentes, os créditos escassos, as possibilidades reduzidas, a idade avançada em dias, e a saúde minada pelo enfrentar cansativo do trabalho quase diuturno.

Todos foram injustos com ele: o governo, que o explorou com pesados impostos; os fregueses, que não honraram os compromissos de pagar o que compraram fiado; e a vida, que lhe tem sido exigente e desigual.

Efeito colateral (conto)

Amarildo conhecia Matheus há quarenta anos. Foram colegas de repartição. Matheus nasceu em setembro de 1944 e Amarildo, em julho de 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial.

Estavam com dezoito anos quando foram nomeados para a seção de contabilidade de certa secretaria estadual.

Como bons amigos, compartilharam algumas aventuras na juventude. Ambos torciam pelo mesmo time de futebol, o Flamengo. “Naquela época, dizia Amarildo sem avermelhar o rosto, o Flamengo era o Flamengo, não esse timezinho de hoje”.

Ele sempre encontrava pessoas dispostas a escutá-lo narrar as “gloriosas” façanhas do seu clube no passado. Custoso, porém, era acreditar em suas estórias, mais parecidas com as lorotas contadas costumeiramente. Tanto uma como outra, careciam de veracidade.

Passados os anos, Amarildo pediu transferência do trabalho para a capital do estado. Matheus ficou no interior, na boa vida. Aos finais de tarde, tomava cerveja e à noite, namorava as garotas simples do lugar, sem se comprometer com nenhuma delas. Sempre brincalhão, dizia: “não casarei; morrerei solteiro, como cachorro”. Uma brincadeira, obviamente. Sem resistir aos apelos de Cupido, casou-se anos depois.

Amarildo pensava em dar continuidade aos estudos, interrompidos há muito tempo. Pretendia fazer uma faculdade, adquirir diploma de curso superior, com o qual lograria ascender na escala social.

Por isso, pediu transferência do trabalho para a capital. Costumava dizer: “na juventude, as pessoas parecem não se dar conta de que o tempo passa, esquecidas de preparar o futuro”. Não fora o seu caso, assegurava.

Prestes a casar, analisou os erros do passado, corrigiu os procedimentos atuais e reviu os planos vindouros, na tentativa de alcançar o sucesso. Vencer na vida. Contudo, não logrou o êxito esperado. As vitórias de um funcionário público são precedidas de concorrências nem sempre leais.

Após trinta e cinco anos de trabalho, Amarildo aderiu ao conforto da aposentadoria. Não resistiu à tentação de receber o salário sem ter de assinar o ponto no início e a cada final de expediente.

Outro motivo, talvez menor, fora o de não sair de casa sequer para receber o contracheque. Os Correios faziam esse serviço por ele.

Ao abrir o holerite, encontrava a indicação da agência bancária mais próxima de sua residência, onde o valor de sua aposentadoria estava depositado.

Amarildo deixou, pois, de ir à repartição; fazia-o apenas por necessidade. Ficou de “molho”, em casa, para economizar roupas e sapatos; gastava, porém, com mais intensidade, chinelos e pijamas. Também aborrecia os empregados por ser rabugento. Reclamava de tudo, enquanto era incomodado pelo latido constante do cachorro e pelos gritos estridentes do papagaio.

Em certa ocasião, encontrou-se no antigo endereço de trabalho com Matheus, seu velho colega de emprego.

O amigo não parecia ser um sessentão. Exibia um corpo esguio, sem nenhuma protuberância, cabelos tingidos na cor acaju, repartidos na parte lateral esquerda da cabeça e jogados sobre o cocuruto, com a nítida intenção de ocultar a careca.

Bastante elegante, trajava calças cinza e camisa branca de mangas compridas, do tipo social; sapatos bem lustrados, casaco de lã sobre os ombros, com as mangas entrelaçadas na altura do peito, e bonitos óculos escuros complementavam-lhe a elegância.

– Você é Matheus, meu velho amigo? – perguntou, surpreso, ao ver o ex-colega naquela idade, com visual moderno, aparência jovem e alegre.
– Sou eu mesmo, cara. Como vai você? – perguntou ao abraçar o colega, feliz ao vê-lo depois de muitos anos ausente.
– Tudo bem – respondeu, afastando-se para contemplar o que os olhos viam e o coração invejava. – Que boa aparência, sô! Parece um garoto! – disse ao abraçar o amigo mais uma vez, ainda incrédulo.

Amarildo sentiu inveja.

Ele, da mesma idade, ostentava, ao contrário, porte volumoso, barriga exageradamente grande, cabelos brancos e escassos, careca brilhante e olhos protegidos por óculos de aros metálico-dourados; dessa forma, e ainda mais de bermudas, camisa de malha e sandálias-de-dedo, nem de longe poderia comparar-se a Matheus.

– Como você conseguiu manter esse “porte atlético”? – perguntou com certo exagero.
– É isso aí, amigão. A gente tem de se cuidar, cara. As gatinhas estão por toda parte; não podemos dar bobeira, “meu”. Você também precisa fazer dieta e praticar exercícios, para ficar assim… como eu! – disse, com as mãos deslizando pelo tórax, até a altura do abdome, como se estivesse diante do espelho, a contemplar a silhueta.
– Não consigo, amigo. Regimes para mim são verdadeiras torturas; causam-me depressão. Não sei passar sem um bom churrasco, boa macarronada, sorvetes… e fazer exercícios físicos não dá. Sinto preguiça.

Matheus não parava de aconselhar o amigo. Falou das virtudes de uma dieta de baixas calorias, abstinência aos doces, às massas e sobre a freqüência às academias de ginástica, para ele a solução dos problemas de obesidade, da má aparência física e o ideal para se obter vida longa e saudável.

– Concordo, mas para mim é quase impossível fazer o que você me aconselha. Não consigo alcançar essas metas.

Os olhos de Amarildo fitavam o chão, na direção dos pés, sem conseguir vê-los. A volumosa barriga não o permitia.

– Rapaz… então arranje uma amante. Não existe melhor incentivo, motivação maior para você adotar boa dieta, praticar exercícios, trajar-se elegantemente; quanto mais nova, melhor. Apresse-se, cara. O tempo voa!
– Eu, arranjar uma amante? Com essa idade? Com esse perfil anatômico? Você está brincando… Ademais, sou muito bem casado, amo minha esposa, adoro meus filhos… não faria isso nem mesmo para melhorar a aparência física, esse visual… – concluiu com uma careta em desaprovação ao corpo obeso.
– Pois é, cara, amante. E nova. Você já ouviu dizer: “para cavalo velho, o remédio é capim novo”. Em poucos meses estará no ponto; terá perdido peso, essa barriga de barril de chope… Desculpa amigo! Não resisti – concluiu com um sorriso zombeteiro nos lábios.
– Você está louco, Matheus!
– Para mim deu certo. Dará para outros barrigudos – finalizou, às gargalhadas, apontando um colega que os ouvia atentamente.

Amarildo despediu-se do antigo colega. Deixou-o a conversar com outras pessoas dispostas a ouvir-lhe as fanfarronices.

***

Matheus mantinha um romance em segredo.

O apartamento alugado, inclusive despesas de manutenção, presentes, gastos com saídas em fins de semana para satisfazer à amásia, passaram a pesar no orçamento já um tanto desfalcado.

Mas isso tinha pouca importância para ele. “A continuar, reduzirei as despesas da matriz” – dizia para si, em momentos de rara reflexão.

Há seis meses, levava vida dupla: esposo e amante. Chegava em casa sempre depois das onze horas da noite; e para justificar, dizia freqüentar curso para homens da terceira idade, onde eram ministradas aulas de um idioma estrangeiro. Ele cursava inglês.

Tudo mentira.

Na realidade, tinha de acompanhar a amante às boates, barzinhos, shoppings e cinemas. Tomava cerveja quase todos os dias e ouvia músicas de pagode que antes odiava. Às vezes, chegava a dormitar sobre o copo de chope, sem ser alertado por Rosa, que aproveitava a oportunidade para flertar com os vizinhos de mesa.

Os amigos sempre o alertaram. Diziam que a amante o traía. Segundo eles, seria impossível uma garota de pouco mais de vinte anos, bonita e de corpo bem feito, em pleno vigor sexual, gostar de um velho sexagenário, com problemas próprios da idade, alguns resistentes aos melhores medicamentos produzidos por grandes laboratórios farmacêuticos.

Ele ficava possesso com as insinuações dos amigos, ao ponto de cortar relação com alguns.

Um dia, quando chegou ao apartamento da namorada, por volta das quatro horas da tarde, encontrou a amante na cama com um jovem, que, depois, soubera ser jogador de futebol.

A traição pôs fim ao romance, porém despertou-lhe a curiosidade.

O jovem que estava com a mulher era um tipo alto, atlético, bem apessoado. Ele o vira frontalmente, ao flagrá-lo naquela ocasião.

Podia dizer que o rapaz era… bonito.

– “Bonito?” “Como bonito?”

Surpreendeu-se com a própria observação.

A angústia tomou conta de Matheus.

– “Por que ele, um homem daquela idade, apreciador do belo sexo, iria achar outro homem bonito?”

Não sabia responder.

Aquilo o deixava maluco.

Fazia-o perder noites de sono.

Não entendia o motivo pelo qual não esquecia o jovem rapaz.

– “Bonito?” – perguntava-se.

– “Sim, bonito” – respondia.

Matheus não teve mais dúvidas.

Seu lado feminino despertara.

Não pensou na família nem nos amigos.

Nada o impediria de revelar-se.

– O que diriam todos?

– Que importaria a opinião de pessoas indiferentes ao amor? – perguntava-se, angustiado com a forte pressão psicológica que sentia naqueles momentos de indecisão.

Matheus resolveu, então, “sair do armário”.

Virou gay.


domingo, 28 de junho de 2009

Inconfidência (crônica)

O dia 21 de Abril nos trás à lembrança o glorioso passado de luta pela independência do Brasil. Nessa data, tão significativa para nós, em que reverenciamos a memória de Joaquim José da Silva Xavier, O Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira,dedico alguns minutos de reflexão a este Brasil brasileiro, amado pela maioria de seus filhos, porém vilipendiado por boa parcela de renegados nativos que se locupletam de sua riqueza, em detrimento de seus iguais.

Tiradentes nasceu em 1746, na Vila de São José Del Rei, atualmente denominada com o seu epíteto, em homenagem à valorosa contribuição dada à emancipação política e administrativa de nosso país.

O alferes, que pertenceu ao regimento militar dos Dragões de Minas Gerais, honrado patriota, digno combatente, foi executado em 21 de Abril de 1792, esquartejado e exposto à execração pública. Seu delator foi Joaquim Silvério dos Reis, com quem compartilhou o ideal de ver o Brasil livre do domínio português, explorador de nossas riquezas e incontrolável cobrador de impostos.

O herói nacional,de inesquecível memória, depois de executado teve seus bens confiscados. Muitos dos seus companheiros de inconfidência, membros da aristocracia mineira, foram poupados da sentença capital, recebendo penas brandas e complacentes.

Hoje, 21 de Abril de 2009, Brasília também aniversária. São 48 anos de existência, trinta dos quais participei como trabalhador em busca de minha sonhada redenção econômica, conseguida a duras penas. Nesse período, acompanhei o crescimento físico, econômico, cultural e político da cidade construída por Juscelino.

Aqui se encontram instalados os três poderes da República, sobre os quais não tenho nem mesmo vaga empolgação.

Os motivos são de todos conhecidos.

O Brasil ressente-se de boa administração e da honestidade do homem público. A política brasileira, nos últimos tempos, tem sido motivo da descrença de um povo sofrido e de poucas esperanças, principalmente sob o âmbito da corrupção. Alguns políticos, poucos por sinal, estão investidos de bons propósitos, o que já é um alento.

No período da Inconfidência havia os que lutavam contra a opressão e pela liberdade política, administrativa e econômica do Brasil, com sacrifício da própria vida, como o nosso herói, Tiradentes.

Atualmente, temos raros defensores de um país justo e economicamente desenvolvido. O Estado continua como dantes: o governo explorando o povo com elevados impostos, parlamentares usurpando a riqueza nacional em homéricas falcatruas, e a justiça julgando com preguiçoso interesse, às vezes, sem a devida imparcialidade.

Pouco mudou desde 1792.

O brasileiro está à espera de um movimento que o redima da injustiça, da espoliação tributária e que o livre definitivamente da corrupção crescente e desenfreada que sufoca a nação.

Para descontrair, finalizo estas reflexões parodiando saudoso poeta nordestino:

Este Brasi brasileiro
É o Brasi mió qui há;
Brasi qui político nojento
Derna de miliquinhento,
Só sabe mermo é roubar.

A entrevista (conto)

A jornalista Amélia Cabral costumava visitar a Febem, na capital paulista, para inteirar-se da situação dos menores internados na instituição.

Seu trabalho sério e competente comovia leitores, preocupava autoridades, sociólogos e psicólogos; também impressionava defensores dos direitos humanos, interessados em notícias sobre maus tratos contra jovens infratores, esses garotos que praticam crimes hediondos, enlutam famílias e assustam a sociedade. Livres, são feras indomáveis, predadores selvagens e cruéis; presos, rejeitam a disciplina, a educação instrutiva e a correção da personalidade rebelde.

Naquela sexta-feira, Amélia cumpria extensa rotina de sua vida profissional. Ela trabalhava duro para fornecer notícias de interesse social e de forte apelo popular aos seus editores.

Há poucos dias, recebera o prêmio Grandes Reportagens, instituído pela ALI – Associação Local de Imprensa.

Uma retribuição merecida.

Amélia parou o carro próximo à guarita, vigiada por solitária sentinela. O guarda estava armado de fuzil, olhos e ouvidos atentos; parecia um camundongo assustado, perscrutando a menor alteração de gestos e ruídos. Depois de cumprimentar o policial e de ter a bolsa revistada, foi autorizada a entrar.

A jornalista seguiu um funcionário chamado a acompanhá-la à sala do diretor, doutor Marcos, advogado de cinqüenta e cinco anos, no cargo há apenas dois meses.

O novo diretor assumiu ciente das dificuldades que enfrentaria. As constantes mudanças na direção da Casa atrapalhavam os programas de reabilitação. A descontinuidade das ações levava à implantação de novas medidas, posteriormente desprezadas por ser inexeqüíveis, por falta de recursos, má vontade ou desinteresse político.

Finalmente, Amélia chegou à portaria central do edifício. Durante curta caminhada, viu pavilhões mal conservados (a pintura descascava sob a ação do sol inclemente), gramados ressecados, estacionamentos de veículos ao desabrigo e inúmeras viaturas abalroadas, necessitadas de conserto, deterioradas pela ação implacável da ferrugem.

Um pequeno caos.

Ao transpor uma porta, a jornalista tropeçou no batente alto e quase perdeu o equilíbrio. Refeita do susto, seguiu a indicação do funcionário.

– Por favor, primeira porta à direita!

Caminharam por pequeno corredor pintado de branco, com faixa verde de um metro e vinte centímetros de altura. Chegaram à sala modestamente mobiliada: mesa retangular, envernizada em passado distante; microcomputador cujo monitor de fundo verde aparentava alguns anos de uso; telefone; pequena mesinha sobre a qual repousavam a garrafa de café, duas xícaras e o açucareiro; e duas cadeiras postas à frente da mesa.

A jornalista sentou-se na mais confortável.

– Sinta-se à vontade! – disse o diretor. – Podemos iniciar a entrevista.
– Quantos menores são hoje, doutor?
– Quase trezentos. A instituição abriga apenas jovens do sexo masculino. Crianças de doze, treze… até dezoito anos incompletos.
– Como é cuidar de tantas crianças, algumas adolescentes, rebeldes...?
– Bastante difícil. Realizamos ótimo trabalho, mesmo com escassez de recursos financeiros. Somos orientados por psicólogos, pedagogos e assistentes sociais. Uma boa equipe. Reeducar jovens como esses, problemáticos, de famílias desestruturadas, de pais alcoólatras, sem nenhum estudo… realmente não é fácil.
– Eles resistem à disciplina, aceitam as orientações? Como se comportam em relação às instruções recebidas?



Ao cruzar a perna direita, Amélia mostrou parte da coxa robusta, bem torneada, graças à genética herdada da mãe. O gesto foi involuntário e prontamente corrigido.
O diretor respondeu depois de se recompor da sutil, inesperada e agradável visão:

– A maioria é indomável. As orientações são quase sempre ignoradas. Eles não respeitam a autoridade dos guardas. Quebram móveis, incendeiam colchões, fabricam estiletes com os quais agridem funcionários, fazem reféns e ameaçam matá-los, quando não os matam em episódios quase rotineiros.

Passado algum tempo, levantaram-se de suas cadeiras, por sugestão do doutor Marcos. Foram à mesinha do café saborear deliciosos biscoitos trazidos pelo diretor.

De repente, ouviram a sirene anunciar uma situação de emergência. O diretor levantou-se apressado. O instinto de sobrevivência aconselhou-o a proteger-se atrás da escrivaninha.

Dois rapazes, talvez de dezessete anos, entraram armados com seus estiletes pontiagudos e afiados.

Os meliantes tomaram a insigne jornalista como refém, presa pelo pescoço. O braço esquerdo de um dos rebelados apertava fortemente a garganta de Amélia. A moça agüentava firme as estocadas do rapaz, efetuadas para assustá-la e para impor obediência ao diretor do estabelecimento.

A rebelião seguia celeremente em quase todo o reformatório. Os guardas mantinham-se ocupados na tentativa de conter a horda de garotos insatisfeitos, principalmente por estarem privados da liberdade. Liberdade por eles mesmos negada ao infringirem a lei e a ordem.

Estavam ali por merecerem.

Ninguém os forçou a viverem em regime fechado, longe da família, enjaulados como animais. À sociedade, restou a separação do “joio” do “trigo”.

Nos dormitórios, os colchões ardiam em chamas. Fogueiras dispersas, oriundas dos muitos móveis incendiados, tomavam conta do edifício. Os telhados pareciam chaminés de grandes indústrias. A fumaça encobria dezenas de rebelados que subiram à cobertura do prédio, dispostos a escapar das chamas e da prisão.

Na sala onde estavam o diretor e a jornalista, os dois delinqüentes tentavam negociar meios para a fuga. Sentado por trás de sua mesa de trabalho, doutor Marcos estava tenso e nervoso; Amélia, de pé, colada ao corpo do bandido, continuava sob ameaça do afiado estilete, que comprimia seu lindo pescoço.

– Dotô, nóis qué um carro forte; desses qui transporta dinhero. O sinhô vai cum nóis pra dá garantia! – falou o rebelado mais forte, com cara de mau.

O bandido ainda acrescentou:

– Ligeiro! Pegue o telefone. Avi, cara!
– Peça dois culête pra protegê nóis das bala – disse o outro comparsa, a pouca distância do diretor, naquele instante vigiado ameaçadoramente.
– Se avexe home… se não ele mata a moça! – gritou o segundo elemento, dando uma pequena estocada no apavorado refém.

Os bandidos pareciam ser nordestinos. O regionalismo das palavras usadas e os portes franzinos confirmavam a suspeita.

Doutor Marcos tentou dialogar. Embora não fosse afeito a situações de perigo como aquela, mantinha a calma. Disse-lhes da impossibilidade de cumprir as exigências deles e do insucesso que teriam na audaciosa empreitada.

– Desistam, meninos. Quantos rebelados são?... Cinqüenta… cem? Como farão para fugir todos? – argumentou o diretor. – As autoridades não aceitarão essas exigências. Parem com isso!
– Não interessa, coroa. Nóis dois fugindo ta bom. Na saída nóis leva o qui puder. O resto é probrema deles! – disse o “Paraíba” que mantinha a moça como refém.

A jovem gritava apavorada a cada contato da lâmina afiada no pescoço.

Lá fora, a algazarra só não era compartilhada por dois guardas e nove internos mortos.

Os funcionários foram esfaqueados com requintes de selvageria; tiveram as gargantas secionadas e os órgãos genitais decepados e introduzidos na boca. Os olhos abertos, sem vida, pareciam contemplar o desconhecido, assustados por gritos de pavor ou incomodados por calor intenso e abrasador.

Uma visão do inferno.

Os garotos, por sua vez, despediram-se do mundo ao som dos estampidos das armas. Os projéteis perfuraram seus corpos magros, deixando-os exangues.

Sem vida.

Finalmente, chegou a polícia de choque, fortemente armada: capacetes, escudos, coletes à prova de balas, metralhadoras, fuzis que repetiam centenas de tiros por minuto.

Os portões foram abertos.

Os soldados entraram.

Os revoltosos pararam de brigar.

Renderam-se à força policial numerosa e ameaçadora. Os dedos dos policias estavam prestes a pressionar os gatilhos das armas. Ou os amotinados paravam ou mudariam de endereço.

O inferno os aguardava.

Na sala do diretor, quatro personagens dessa triste contenda entreolhavam-se assustados; de um lado, os dois meliantes rebelados, irresponsáveis e sem futuro; de outro, o diretor, representante de autoridades arrogantes e soberbas; entre eles, isenta de culpa, a profissional de imprensa, no exercício do sagrado direito de informar.

A refrega acabou.

Contaram-se dezoito mortos: dois guardas da Casa de Custódia, treze amotinados ainda imberbes, o diretor e a jovem jornalista.

O “Paraíba”, autor das três mortes finais, inclusive a do companheiro que havia sugerido entregar-se, exibia o estilete como troféu de guerra.

O bandido foi impiedosamente metralhado pelos policiais, ao invadirem a sala.

O cenário da última entrevista da jovem repórter era aterrador. Olhos sem vida mantinham-se abertos, como se contemplassem o inferno, em dia de maior sofrimento.
Alguns pareciam ver o próprio demônio, saudando-os com votos de “boas-vindas”!

Amélia teve sua biografia divulgada em todos os jornais do país e do exterior. Sua foto foi mostrada nas televisões do mundo inteiro, repetidas vezes. Seus feitos jornalísticos foram enaltecidos à exaustão.

E para homenagear sua efêmera passagem por este mundo tenebroso, gravaram um epitáfio na lápide fria do túmulo em que passara a residir: “Aqui jaz Amélia Cabral, assassinada no cumprimento do dever”.

domingo, 7 de junho de 2009

A cirurgia (conto)

Os olhos estavam fechados. A inchação das pálpebras impedia de o paciente abri-las; por isso, nada via à sua frente ou em volta de si.

Os ouvidos não foram afetados. A orelha esquerda estava suturada por seis pontos e a outra dolorida e arroxeada.

Um tubo, colocado na boca para facilitar a respiração, impedia-o de falar.

Os exames de raios-x constataram fraturas em duas costelas e na clavícula, o que levou os médicos a vesti-lo com um colete de gesso.

O rosto estava envolto em ataduras, pois fora submetido à cirurgia reparadora dos ossos da face.

Essa era a situação de Luiz, na UTI do hospital onde estava internado, após o grave acidente de automóvel, ocorrido no dia anterior.

Os parentes aguardavam notícias do seu estado de saúde na sala-de-espera do hospital. As informações eram prestadas pelo médico-chefe da equipe cirúrgica.
– Ele vai se recuperar. É forte e as lesões não são graves. Alguns ossos da face sofreram fraturas, porém irão se consolidar.
– Doutor, mas por que todos aqueles tubos? Os olhos inchados, fechados daquele jeito, estariam comprometidos por alguma lesão? – perguntou um dos parentes, após levar um lencinho branco aos olhos para secar uma lágrima.
– Não. O oftalmologista assegurou que estão em ordem. Dentro de alguns dias os olhos serão abertos e ele enxergará como antes. Quanto aos tubos, fazem parte da monitoração cardiorespiratória.
– Obrigado doutor! – agradeceu o senhor Luiz, de quem o paciente herdara o nome em sua homenagem, por ser o seu primogênito.

Algum tempo havia passado desde o acidente.

Amigos e familiares compareciam ao hospital para trazer conforto espiritual e votos de breve recuperação ao doente.

As melhoras aconteciam paulatinamente. Ele já abria os olhos e conseguia conversar com as visitas. Falava do acidente, eximindo-se de responsabilidade. Alegava não desenvolver velocidade excessiva em seu veículo, quando tudo aconteceu. “O destino aqui e ali apronta das suas”, disse desconsolado.

O companheiro de viagem morrera e a namorada ficara paraplégica. Assim lhe contara o pai na última visita.

Luiz recuperava-se, bem cuidado por médicos e enfermeiras. O incômodo maior eram as cicatrizes no rosto, mostradas pela irmã ao trazer-lhe um espelho.

Ele acreditava na perícia do cirurgião plástico. O médico restauraria as seqüelas. Luiz considerava-se simpático, até mesmo bonito, e faria o possível para recuperar a beleza do rosto.

Durante a convalescença, o enfermo recebia grande atenção das enfermeiras. Certa vez, Sílvia, linda garota de seios fartos, pernas longas e torneadas, foi assediada por Luiz.

O doente apalpou a b… arrebitada e vistosa da moça. Ela o medicava ao ser importunada. Nessa ocasião, alguém passou diante do apartamento e presenciou o ousado gesto do paciente.

A enfermeira reconheceu a testemunha. Bastante constrangida, repreendeu e ameaçou Luiz com providências enérgicas, caso o assédio fosse repetido.

Passados alguns dias, Luiz recebeu a visita de uma equipe de estudantes de medicina, acompanhada do preceptor, especialista em cirurgia plástica.

Dizia o experiente professor aos alunos:
– O paciente será operado para correção dessas cicatrizes.

O médico apontou as seqüelas à pequena distância. Quase tocou o rosto de Luiz. Em seguida, continuou:
– O material será retirado das nádegas...

Minutos depois de conversar sobre as condições clínicas do paciente, e de marcar a operação, professor e alunos saíram com breve despedida:
– Tenha um bom dia, senhor. Fique tranqüilo. Tudo sairá bem – disseram.

Luiz ouviu as explicações do cirurgião. Quando ele mencionou a aplicação de tecidos das nádegas, notou que um dos alunos levara a mão à boca para disfarçar o sorriso.

Preocupado, pensou no resultado cirúrgico, que poderia ser um sucesso como tantos realizados naquele hospital, mas, se algum estudante (quem sabe aquele que esboçara o sorriso irônico?) fizesse parte da equipe, o risco seria grande por não dominar a técnica da cirurgia plástica.

Ele, Luiz, poderia ficar, depois de operado, com… como dizer… assim… com… “com cara de bundão”.

O enfermo não dormiu durante a noite.

Perguntava-se angustiado: “Os tecidos das nádegas, amarrotados pelo peso do corpo ao sentar-se, oriundos de partes… menos nobres, acostumados a barulhos e odores… repugnantes, seriam apropriados para trazer de volta a beleza do seu rosto?”.

***


Finalmente, chegou o dia da cirurgia. Foram horas de intenso trabalho. Passado algum tempo, removeram as ataduras e constataram grande fracasso.

As maçãs da face estavam salientes e abauladas. Davam a impressão de estarem ligeiramente separadas por um vinco. O nariz anguloso parecia surgir ou penetrar pela imaginária reentrância.

Luiz quis se ver no espelho.

O rosto deformado não deixou dúvidas.

Lembrou-se de ter apalpado a b… da jovem funcionária do hospital.

Agora entendia tudo: “A enfermeira era esposa do cirurgião plástico. Num ato de vingança, o médico revidou o audacioso gesto” – disse para si, lamentando a ousada imprudência.

Naquele momento, sentiu-se arrependido.

Tarde demais.

O receio de Luiz foi confirmado.

Ele ficou mesmo “com cara de bundão”.

A diarista (conto)

Que calor”! – exclamava Maria, molhada de suor. O esforço para limpar a casa da patroa era exaustivo. O chão, os móveis e a decoração exigiam limpeza, cuidado e horas de cansativo trabalho. Um serviço que ela agradecia à Deus quando o tinha para realizar, pois, assim, cumpriria parte de suas obrigações financeiras.

O que não era pouco.

Dona Marta costumava pagar a Maria uma diária de trinta reais, sempre insatisfeita. “Uma fortuna gente!” – reclamava como se fosse a primeira vez.

A patroa era exigente. Insistia para a pobre diarista cumprir jornada de oito horas de trabalho. Do contrário, não faria jus à remuneração.

Maria dava seqüência às atividades do dia. Naquele instante, lavava o piso de granito, assentado por mãos habilidosas; os frisos entre uma pedra e outra pareciam traços de artista caprichoso, mestre de trabalho perfeito. Puxou a água com o rodo, salpicou detergente com cheiro de rosas, passou o pano úmido, torceu e o depositou no recipiente metálico colocado no chão, ao alcance das mãos.

Os degraus da escada levavam aos quartos de dormir. Ela subiu-os de dois em dois, pronta para reiniciar o serviço. Abriu as janelas e recebeu no rosto a brisa benfazeja.

O ar fresco revigorou-lhe as forças.

Havia muito que fazer.

Lavou o chão, aspirou os tapetes, cobriu as camas com colchas limpas e cheirosas, trocou as fronhas dos travesseiros e, por fim, borrifou o ambiente com essência de jasmim.

Em seguida, lustrou o corrimão da escada… Finalmente, suspirou aliviada: “mais um!” – disse, com relação ao ambiente, cuja limpeza estava concluída.

Agora, iria limpar o escritório, verdadeira bagunça patrocinada pelo dono da casa. Livros, papéis, canetas e pastas estavam espalhados sobre a estante e a mesa em que abundavam envelopes subscritos, muitos dos quais sequer foram abertos.

Em certa prateleira da estante, Maria encontrou uma fita cassete com a etiqueta sem qualquer anotação. Supôs conter músicas sertanejas bem ao gosto de seu Raimundo.

Mesmo sem autorização, resolveu tomá-la emprestada até a próxima semana. Iria ouvi-la em casa, ao retornar do trabalho. “Não fará falta ao seu Mundico por esses dias” – pensou.

Colocou a fita em uma sacola, misturada à escova de cabelos, ao batom e ao desodorante, objetos indispensáveis à vaidade.

No final da tarde, concluídas as tarefas do dia, despediu–se da patroa. Iria enfrentar mais algumas horas de trabalho ao chegar a casa.

Viajou por muito tempo em ônibus lotado. O veículo percorreu ruas congestionadas de carros e apinhadas de gente, até deixá-la próximo à sua residência.

Em casa, aliviou a dor dos pés, descalçando os sapatos apertados. Com o dedão do pé esquerdo, livrou-se do calçado direito; com o do direito, suavizou o desconforto do pé esquerdo, suspirando satisfeita:
– Até que enfim, cheguei inteira!

Atirou a sacola em cima da cama, coberta por uma colcha de retalhos coloridos, e foi à cozinha preparar o jantar do marido e dos filhos.

Levantou a tampa de uma panela: vazia; de outra: arroz, vitrificado e pouco. Resolveu fazer uma farofa, cozinhar ovos e fritar alguns pedaços de lingüiça.

Enquanto os ovos coziam, ensaboou duas calcinhas e quatro cuecas deixadas no tanque desde a manhã. Enxaguou, torceu e pendurou as modestas peças em varal próximo à casa do cachorro, que latia feito um desesperado.

O pobre animal estava com fome.

A magreza do bichinho denunciava privações alimentares, a alopecia era visível e a leishmaniose visceral ou calazar confirmava seu sofrimento.

O marido chegou.

José e Luiz, os filhos, vieram em seguida.

Mortos de fome.

Trabalharam o dia inteiro como serventes de pedreiro, debaixo do sol forte e inclemente. Comeram o arroz, a farofa de ovos e a lingüiça. Não se lembraram do cachorro, que foi dormir ao relento com a mesma fome de antes.

Maria perguntou ao marido se ele a procuraria naquela noite:
– Pedro, você vai-me “usar” hoje?
– Não – respondeu sonolento.

A resposta negativa não a agradou.
– Então, vou lavar apenas os pés – disse, decepcionada com o desinteresse do companheiro.

Foram todos dormir.

Os filhos, sem escovar os dentes e com o suor do corpo a exalar um cheiro enjoativo, ficaram na sala onde assistiriam à televisão. Dormiriam ali mesmo; um no sofá e o outro num surrado colchonete.

O marido roncou logo ao deitar-se.

Estava cansado.

As doses da pinga, tomadas no boteco, abriram o apetite e incitaram o sono do velho guerreiro.

Na maior parte das noites, a insônia era companheira inseparável de Maria. Sem poder dormir, pensava: “hoje, ganhei trinta reais, insuficientes para pagar o aluguel do barraco; e amanhã?”

Desesperada, clamou aos Céus:
– Deus, onde estás?

Maria chorou, preocupada com o futuro. Enxugou as lágrimas com a ponta do lençol, levantou-se e foi apanhar a fita cassete trazida da casa de seu Raimundo.

Iria ouvi-la para conciliar o sono.

Dormiria embalada pelos acordes da viola chorosa. O “clic” do gravador deu início não a uma canção, mas a um diálogo em que ela reconheceu a voz de seu Mundico:
– Secretário, despachei o dinheiro. Foram quinhentos mil dólares depositados em sua conta nas Ilhas Cayman. O doutor Paulo disse ser por conta do contrato do viaduto. Com este, completam-se os dois milhões combinados como comissão.
– Muito bem, Raimundo. Passe aqui para receber o seu – respondeu uma voz estranha aos ouvidos de Maria.
– Certo. Passarei amanhã, quando o senhor tiver o dinheiro em mãos. “Não gostaria de receber cheques. Prefiro dinheiro vivo que não tem língua nem pernas, não fala e não deixa rastros” – pensou ao desligar o telefone.

A fita continha muito mais informações. Maria ouviu detalhes de conversas sobre repasses de propinas a outros membros do governo, gente do primeiro e do segundo escalões.

Irritou-se a cada palavra ouvida; lembrou-se de notícias passadas, denúncias que não levaram a nada, cada dia mais presentes, mais atuais, sem qualquer solução.

Ela não ignorava as maracutaias praticadas em palácios e grandes escritórios; ouvira falar das gordas comissões acertadas em bons restaurantes; a televisão era pródiga em divulgar essas coisas.

A diarista entendeu tudo e não concordou em nada.

“Por que esses ladrões não são presos e processados?” – desabafou solitariamente. Irritada, disse resoluta: “já sei. Amanhã entregarei esta fita a um jornal da cidade!”

E o fez.

Levou a gravação a conceituado matutino, despreocupada com as conseqüências de seu ato. Preferia perder a remuneração dos serviços prestados ao seu Mundico.

“Deus haverá de prover as necessidades da família” – disse para si, quase num sussurro.

Ela cria, com certa indiferença.

O jornal mandou analisar a fita por um especialista, a fim de constatar a autenticidade da gravação.

Publicou o diálogo sem cortes.

O povo, indignado, leu a notícia e tomou conhecimento das propinas, tão abundantes quanto o número de políticos desonestos.

As autoridades já as conheciam, sem nenhuma providência saneadora.

Nada apuravam.

Por isso, a impunidade campeava, para satisfação dos desonestos.

Principalmente políticos.

Depois de ver as imagens e ouvir a notícia na televisão, desiludida, Maria desligou o aparelho.

Ela pouco acreditava na justiça.

Ouvira dizer que os membros das Cortes, mesmo as superiores, são levados aos cargos por critérios políticos; daí, sua falta de empolgação. “Os políticos são resistentes a investigações e imunes à aplicação de penas corretivas. Será sempre assim!” – concluiu desanimada.

Naquele dia, ninguém trabalhou por falta de oportunidades.

De volta à cozinha, Maria preparou o almoço do marido e dos filhos famintos.

Comeram arroz com ovos cozidos.

Não tinha como fritá-los.

Faltavam a manteiga, a margarina, o óleo…

sábado, 6 de junho de 2009

Coisa de louco (crônica)

No mundo tem gente pra tudo”, diz o adágio popular. Pessoas que topam qualquer parada, a qualquer hora, sem medir as conseqüências. Nada faz diferença para elas. Algumas são alegres, irreverentes, brincalhonas, fofoqueiras, exóticas, inusitadas, sábias, bobas, malandras, boas ou más. Outras são incapazes, ridículas, e, por isso, cometem loucuras, às vezes irreparáveis.

O mundo é assim, heterogêneo também em relação às pessoas, díspares em gostos e atitudes. Aliás, o que seria do bonito sem o feio para encantar-se com sua formosura; do magro sem o gordo para servir-lhe de chacota; do alto sem o baixinho para alegrar-lhe as piadas; do doce sem o amargo para valorizar-lhe o sabor, ou da tristeza se a alegria não viesse depois?

Por sugestão de amigo, da mais alta consideração, refleti sobre nomes de pessoas de difícil pronúncia, e mais ainda de se escrever de “carreirinha”, como dizia “Zeca Diabo”, no seriado “O Bem Amado”. Pois bem. Pediu-me o amigo que escrevesse sobre esses nomes.

Após árdua pesquisa, obtive extensa relação. Esforcei-me para entender porque um pai, sem dó nem piedade, dá a um filho designações que lhe marcarão a vida, tornando-o vulnerável às brincadeiras irreverentes dos amigos?

Os pais dessas crianças, possivelmente tiveram o propósito de homenagear ídolos do cinema, do futebol, da política ou desejaram registrar fatos, acontecimentos e circunstâncias que lhes marcaram a existência. Quem sabe, por serem irreverentes demais, excessivamente brincalhões ou irresponsavelmente ridículos.

Nomes como Escrotelvina Telvina; Vaginaldo Pinto Cabelo; Jacinto Pinto; Ácido Acético Etílico da Silva; Colapso Cardíaco da Silva; Cólica de Jesus; Remédio Amargo; e Esparadrapo Clemente de Sá, talvez tenham sido inspirados nas partes íntimas do homem e da mulher ou por serem os pais dessas crianças médicos ou enfermeiros.

Homenagearam astros do cinema, da televisão e do futebol, batizaram filhos de Flávio Cavalcanti Rei da Televisão, Avagina (formado dos nomes das atrizes Ava Gardner e Gina Lolobrigida), Tospericagerja (tomados emprestados das primeiras sílabas dos nomes de Tostão, Pelé, Rivelino, Carlos Alberto, Gerson e Jairzinho).

Outros inusitados registros fazem parte da minha pesquisa. Constatei a existência de cidadãos chamados de Hidráulico Oliveira, Janeiro Fevereiro de Março e Abril, João Cara de José, José Catarrinho, Antônio Veado Prematuro, Carabino Tiro Certo, Manuel Sovaco de Gambá, Maria da Segunda Distração… E muitos outros.

Se for verdade que “no mundo tem gente pra tudo”, talvez algum leitor, após ler esta crônica, manifeste o desejo de batizar seus futuros filhos com nomes marcantes e incomuns. Portanto, eis, aqui, algumas sugestões: João da Mesma Data, Himeneu Casamenteiro das Dores Conjugais, Chevrolet da Silva Ford, Restos Mortais de Catarina, Rolando Escada Abaixo, Vicente Mais ou Menos, José Casou de Calças Curtas, Benemérita do Rego Grande, José Xixi, Última Delícia do Casal...
Basta.
É coisa de louco!