domingo, 7 de junho de 2009

A diarista (conto)

Que calor”! – exclamava Maria, molhada de suor. O esforço para limpar a casa da patroa era exaustivo. O chão, os móveis e a decoração exigiam limpeza, cuidado e horas de cansativo trabalho. Um serviço que ela agradecia à Deus quando o tinha para realizar, pois, assim, cumpriria parte de suas obrigações financeiras.

O que não era pouco.

Dona Marta costumava pagar a Maria uma diária de trinta reais, sempre insatisfeita. “Uma fortuna gente!” – reclamava como se fosse a primeira vez.

A patroa era exigente. Insistia para a pobre diarista cumprir jornada de oito horas de trabalho. Do contrário, não faria jus à remuneração.

Maria dava seqüência às atividades do dia. Naquele instante, lavava o piso de granito, assentado por mãos habilidosas; os frisos entre uma pedra e outra pareciam traços de artista caprichoso, mestre de trabalho perfeito. Puxou a água com o rodo, salpicou detergente com cheiro de rosas, passou o pano úmido, torceu e o depositou no recipiente metálico colocado no chão, ao alcance das mãos.

Os degraus da escada levavam aos quartos de dormir. Ela subiu-os de dois em dois, pronta para reiniciar o serviço. Abriu as janelas e recebeu no rosto a brisa benfazeja.

O ar fresco revigorou-lhe as forças.

Havia muito que fazer.

Lavou o chão, aspirou os tapetes, cobriu as camas com colchas limpas e cheirosas, trocou as fronhas dos travesseiros e, por fim, borrifou o ambiente com essência de jasmim.

Em seguida, lustrou o corrimão da escada… Finalmente, suspirou aliviada: “mais um!” – disse, com relação ao ambiente, cuja limpeza estava concluída.

Agora, iria limpar o escritório, verdadeira bagunça patrocinada pelo dono da casa. Livros, papéis, canetas e pastas estavam espalhados sobre a estante e a mesa em que abundavam envelopes subscritos, muitos dos quais sequer foram abertos.

Em certa prateleira da estante, Maria encontrou uma fita cassete com a etiqueta sem qualquer anotação. Supôs conter músicas sertanejas bem ao gosto de seu Raimundo.

Mesmo sem autorização, resolveu tomá-la emprestada até a próxima semana. Iria ouvi-la em casa, ao retornar do trabalho. “Não fará falta ao seu Mundico por esses dias” – pensou.

Colocou a fita em uma sacola, misturada à escova de cabelos, ao batom e ao desodorante, objetos indispensáveis à vaidade.

No final da tarde, concluídas as tarefas do dia, despediu–se da patroa. Iria enfrentar mais algumas horas de trabalho ao chegar a casa.

Viajou por muito tempo em ônibus lotado. O veículo percorreu ruas congestionadas de carros e apinhadas de gente, até deixá-la próximo à sua residência.

Em casa, aliviou a dor dos pés, descalçando os sapatos apertados. Com o dedão do pé esquerdo, livrou-se do calçado direito; com o do direito, suavizou o desconforto do pé esquerdo, suspirando satisfeita:
– Até que enfim, cheguei inteira!

Atirou a sacola em cima da cama, coberta por uma colcha de retalhos coloridos, e foi à cozinha preparar o jantar do marido e dos filhos.

Levantou a tampa de uma panela: vazia; de outra: arroz, vitrificado e pouco. Resolveu fazer uma farofa, cozinhar ovos e fritar alguns pedaços de lingüiça.

Enquanto os ovos coziam, ensaboou duas calcinhas e quatro cuecas deixadas no tanque desde a manhã. Enxaguou, torceu e pendurou as modestas peças em varal próximo à casa do cachorro, que latia feito um desesperado.

O pobre animal estava com fome.

A magreza do bichinho denunciava privações alimentares, a alopecia era visível e a leishmaniose visceral ou calazar confirmava seu sofrimento.

O marido chegou.

José e Luiz, os filhos, vieram em seguida.

Mortos de fome.

Trabalharam o dia inteiro como serventes de pedreiro, debaixo do sol forte e inclemente. Comeram o arroz, a farofa de ovos e a lingüiça. Não se lembraram do cachorro, que foi dormir ao relento com a mesma fome de antes.

Maria perguntou ao marido se ele a procuraria naquela noite:
– Pedro, você vai-me “usar” hoje?
– Não – respondeu sonolento.

A resposta negativa não a agradou.
– Então, vou lavar apenas os pés – disse, decepcionada com o desinteresse do companheiro.

Foram todos dormir.

Os filhos, sem escovar os dentes e com o suor do corpo a exalar um cheiro enjoativo, ficaram na sala onde assistiriam à televisão. Dormiriam ali mesmo; um no sofá e o outro num surrado colchonete.

O marido roncou logo ao deitar-se.

Estava cansado.

As doses da pinga, tomadas no boteco, abriram o apetite e incitaram o sono do velho guerreiro.

Na maior parte das noites, a insônia era companheira inseparável de Maria. Sem poder dormir, pensava: “hoje, ganhei trinta reais, insuficientes para pagar o aluguel do barraco; e amanhã?”

Desesperada, clamou aos Céus:
– Deus, onde estás?

Maria chorou, preocupada com o futuro. Enxugou as lágrimas com a ponta do lençol, levantou-se e foi apanhar a fita cassete trazida da casa de seu Raimundo.

Iria ouvi-la para conciliar o sono.

Dormiria embalada pelos acordes da viola chorosa. O “clic” do gravador deu início não a uma canção, mas a um diálogo em que ela reconheceu a voz de seu Mundico:
– Secretário, despachei o dinheiro. Foram quinhentos mil dólares depositados em sua conta nas Ilhas Cayman. O doutor Paulo disse ser por conta do contrato do viaduto. Com este, completam-se os dois milhões combinados como comissão.
– Muito bem, Raimundo. Passe aqui para receber o seu – respondeu uma voz estranha aos ouvidos de Maria.
– Certo. Passarei amanhã, quando o senhor tiver o dinheiro em mãos. “Não gostaria de receber cheques. Prefiro dinheiro vivo que não tem língua nem pernas, não fala e não deixa rastros” – pensou ao desligar o telefone.

A fita continha muito mais informações. Maria ouviu detalhes de conversas sobre repasses de propinas a outros membros do governo, gente do primeiro e do segundo escalões.

Irritou-se a cada palavra ouvida; lembrou-se de notícias passadas, denúncias que não levaram a nada, cada dia mais presentes, mais atuais, sem qualquer solução.

Ela não ignorava as maracutaias praticadas em palácios e grandes escritórios; ouvira falar das gordas comissões acertadas em bons restaurantes; a televisão era pródiga em divulgar essas coisas.

A diarista entendeu tudo e não concordou em nada.

“Por que esses ladrões não são presos e processados?” – desabafou solitariamente. Irritada, disse resoluta: “já sei. Amanhã entregarei esta fita a um jornal da cidade!”

E o fez.

Levou a gravação a conceituado matutino, despreocupada com as conseqüências de seu ato. Preferia perder a remuneração dos serviços prestados ao seu Mundico.

“Deus haverá de prover as necessidades da família” – disse para si, quase num sussurro.

Ela cria, com certa indiferença.

O jornal mandou analisar a fita por um especialista, a fim de constatar a autenticidade da gravação.

Publicou o diálogo sem cortes.

O povo, indignado, leu a notícia e tomou conhecimento das propinas, tão abundantes quanto o número de políticos desonestos.

As autoridades já as conheciam, sem nenhuma providência saneadora.

Nada apuravam.

Por isso, a impunidade campeava, para satisfação dos desonestos.

Principalmente políticos.

Depois de ver as imagens e ouvir a notícia na televisão, desiludida, Maria desligou o aparelho.

Ela pouco acreditava na justiça.

Ouvira dizer que os membros das Cortes, mesmo as superiores, são levados aos cargos por critérios políticos; daí, sua falta de empolgação. “Os políticos são resistentes a investigações e imunes à aplicação de penas corretivas. Será sempre assim!” – concluiu desanimada.

Naquele dia, ninguém trabalhou por falta de oportunidades.

De volta à cozinha, Maria preparou o almoço do marido e dos filhos famintos.

Comeram arroz com ovos cozidos.

Não tinha como fritá-los.

Faltavam a manteiga, a margarina, o óleo…

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