segunda-feira, 29 de junho de 2009

Efeito colateral (conto)

Amarildo conhecia Matheus há quarenta anos. Foram colegas de repartição. Matheus nasceu em setembro de 1944 e Amarildo, em julho de 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial.

Estavam com dezoito anos quando foram nomeados para a seção de contabilidade de certa secretaria estadual.

Como bons amigos, compartilharam algumas aventuras na juventude. Ambos torciam pelo mesmo time de futebol, o Flamengo. “Naquela época, dizia Amarildo sem avermelhar o rosto, o Flamengo era o Flamengo, não esse timezinho de hoje”.

Ele sempre encontrava pessoas dispostas a escutá-lo narrar as “gloriosas” façanhas do seu clube no passado. Custoso, porém, era acreditar em suas estórias, mais parecidas com as lorotas contadas costumeiramente. Tanto uma como outra, careciam de veracidade.

Passados os anos, Amarildo pediu transferência do trabalho para a capital do estado. Matheus ficou no interior, na boa vida. Aos finais de tarde, tomava cerveja e à noite, namorava as garotas simples do lugar, sem se comprometer com nenhuma delas. Sempre brincalhão, dizia: “não casarei; morrerei solteiro, como cachorro”. Uma brincadeira, obviamente. Sem resistir aos apelos de Cupido, casou-se anos depois.

Amarildo pensava em dar continuidade aos estudos, interrompidos há muito tempo. Pretendia fazer uma faculdade, adquirir diploma de curso superior, com o qual lograria ascender na escala social.

Por isso, pediu transferência do trabalho para a capital. Costumava dizer: “na juventude, as pessoas parecem não se dar conta de que o tempo passa, esquecidas de preparar o futuro”. Não fora o seu caso, assegurava.

Prestes a casar, analisou os erros do passado, corrigiu os procedimentos atuais e reviu os planos vindouros, na tentativa de alcançar o sucesso. Vencer na vida. Contudo, não logrou o êxito esperado. As vitórias de um funcionário público são precedidas de concorrências nem sempre leais.

Após trinta e cinco anos de trabalho, Amarildo aderiu ao conforto da aposentadoria. Não resistiu à tentação de receber o salário sem ter de assinar o ponto no início e a cada final de expediente.

Outro motivo, talvez menor, fora o de não sair de casa sequer para receber o contracheque. Os Correios faziam esse serviço por ele.

Ao abrir o holerite, encontrava a indicação da agência bancária mais próxima de sua residência, onde o valor de sua aposentadoria estava depositado.

Amarildo deixou, pois, de ir à repartição; fazia-o apenas por necessidade. Ficou de “molho”, em casa, para economizar roupas e sapatos; gastava, porém, com mais intensidade, chinelos e pijamas. Também aborrecia os empregados por ser rabugento. Reclamava de tudo, enquanto era incomodado pelo latido constante do cachorro e pelos gritos estridentes do papagaio.

Em certa ocasião, encontrou-se no antigo endereço de trabalho com Matheus, seu velho colega de emprego.

O amigo não parecia ser um sessentão. Exibia um corpo esguio, sem nenhuma protuberância, cabelos tingidos na cor acaju, repartidos na parte lateral esquerda da cabeça e jogados sobre o cocuruto, com a nítida intenção de ocultar a careca.

Bastante elegante, trajava calças cinza e camisa branca de mangas compridas, do tipo social; sapatos bem lustrados, casaco de lã sobre os ombros, com as mangas entrelaçadas na altura do peito, e bonitos óculos escuros complementavam-lhe a elegância.

– Você é Matheus, meu velho amigo? – perguntou, surpreso, ao ver o ex-colega naquela idade, com visual moderno, aparência jovem e alegre.
– Sou eu mesmo, cara. Como vai você? – perguntou ao abraçar o colega, feliz ao vê-lo depois de muitos anos ausente.
– Tudo bem – respondeu, afastando-se para contemplar o que os olhos viam e o coração invejava. – Que boa aparência, sô! Parece um garoto! – disse ao abraçar o amigo mais uma vez, ainda incrédulo.

Amarildo sentiu inveja.

Ele, da mesma idade, ostentava, ao contrário, porte volumoso, barriga exageradamente grande, cabelos brancos e escassos, careca brilhante e olhos protegidos por óculos de aros metálico-dourados; dessa forma, e ainda mais de bermudas, camisa de malha e sandálias-de-dedo, nem de longe poderia comparar-se a Matheus.

– Como você conseguiu manter esse “porte atlético”? – perguntou com certo exagero.
– É isso aí, amigão. A gente tem de se cuidar, cara. As gatinhas estão por toda parte; não podemos dar bobeira, “meu”. Você também precisa fazer dieta e praticar exercícios, para ficar assim… como eu! – disse, com as mãos deslizando pelo tórax, até a altura do abdome, como se estivesse diante do espelho, a contemplar a silhueta.
– Não consigo, amigo. Regimes para mim são verdadeiras torturas; causam-me depressão. Não sei passar sem um bom churrasco, boa macarronada, sorvetes… e fazer exercícios físicos não dá. Sinto preguiça.

Matheus não parava de aconselhar o amigo. Falou das virtudes de uma dieta de baixas calorias, abstinência aos doces, às massas e sobre a freqüência às academias de ginástica, para ele a solução dos problemas de obesidade, da má aparência física e o ideal para se obter vida longa e saudável.

– Concordo, mas para mim é quase impossível fazer o que você me aconselha. Não consigo alcançar essas metas.

Os olhos de Amarildo fitavam o chão, na direção dos pés, sem conseguir vê-los. A volumosa barriga não o permitia.

– Rapaz… então arranje uma amante. Não existe melhor incentivo, motivação maior para você adotar boa dieta, praticar exercícios, trajar-se elegantemente; quanto mais nova, melhor. Apresse-se, cara. O tempo voa!
– Eu, arranjar uma amante? Com essa idade? Com esse perfil anatômico? Você está brincando… Ademais, sou muito bem casado, amo minha esposa, adoro meus filhos… não faria isso nem mesmo para melhorar a aparência física, esse visual… – concluiu com uma careta em desaprovação ao corpo obeso.
– Pois é, cara, amante. E nova. Você já ouviu dizer: “para cavalo velho, o remédio é capim novo”. Em poucos meses estará no ponto; terá perdido peso, essa barriga de barril de chope… Desculpa amigo! Não resisti – concluiu com um sorriso zombeteiro nos lábios.
– Você está louco, Matheus!
– Para mim deu certo. Dará para outros barrigudos – finalizou, às gargalhadas, apontando um colega que os ouvia atentamente.

Amarildo despediu-se do antigo colega. Deixou-o a conversar com outras pessoas dispostas a ouvir-lhe as fanfarronices.

***

Matheus mantinha um romance em segredo.

O apartamento alugado, inclusive despesas de manutenção, presentes, gastos com saídas em fins de semana para satisfazer à amásia, passaram a pesar no orçamento já um tanto desfalcado.

Mas isso tinha pouca importância para ele. “A continuar, reduzirei as despesas da matriz” – dizia para si, em momentos de rara reflexão.

Há seis meses, levava vida dupla: esposo e amante. Chegava em casa sempre depois das onze horas da noite; e para justificar, dizia freqüentar curso para homens da terceira idade, onde eram ministradas aulas de um idioma estrangeiro. Ele cursava inglês.

Tudo mentira.

Na realidade, tinha de acompanhar a amante às boates, barzinhos, shoppings e cinemas. Tomava cerveja quase todos os dias e ouvia músicas de pagode que antes odiava. Às vezes, chegava a dormitar sobre o copo de chope, sem ser alertado por Rosa, que aproveitava a oportunidade para flertar com os vizinhos de mesa.

Os amigos sempre o alertaram. Diziam que a amante o traía. Segundo eles, seria impossível uma garota de pouco mais de vinte anos, bonita e de corpo bem feito, em pleno vigor sexual, gostar de um velho sexagenário, com problemas próprios da idade, alguns resistentes aos melhores medicamentos produzidos por grandes laboratórios farmacêuticos.

Ele ficava possesso com as insinuações dos amigos, ao ponto de cortar relação com alguns.

Um dia, quando chegou ao apartamento da namorada, por volta das quatro horas da tarde, encontrou a amante na cama com um jovem, que, depois, soubera ser jogador de futebol.

A traição pôs fim ao romance, porém despertou-lhe a curiosidade.

O jovem que estava com a mulher era um tipo alto, atlético, bem apessoado. Ele o vira frontalmente, ao flagrá-lo naquela ocasião.

Podia dizer que o rapaz era… bonito.

– “Bonito?” “Como bonito?”

Surpreendeu-se com a própria observação.

A angústia tomou conta de Matheus.

– “Por que ele, um homem daquela idade, apreciador do belo sexo, iria achar outro homem bonito?”

Não sabia responder.

Aquilo o deixava maluco.

Fazia-o perder noites de sono.

Não entendia o motivo pelo qual não esquecia o jovem rapaz.

– “Bonito?” – perguntava-se.

– “Sim, bonito” – respondia.

Matheus não teve mais dúvidas.

Seu lado feminino despertara.

Não pensou na família nem nos amigos.

Nada o impediria de revelar-se.

– O que diriam todos?

– Que importaria a opinião de pessoas indiferentes ao amor? – perguntava-se, angustiado com a forte pressão psicológica que sentia naqueles momentos de indecisão.

Matheus resolveu, então, “sair do armário”.

Virou gay.


Um comentário:

  1. Grande Amigo Lamércio,

    Que delícia de conto... um conto de réis... a forma perfeita, o português dinâmico e claro, musical, e o final surpreendente!
    Gostei demais da conta, sô! Parabéns!
    Forte abraço.
    Jairo Santos Cabral

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