sexta-feira, 31 de julho de 2009

Influência nula (conto)

O pai, funcionário do Estado. Chamava-se Adão. A mãe, Eneida, era professora primária. A renda da família permitia ao casal e aos três filhos viverem razoavelmente. Para morar, escolheram uma cidade do interior onde o custo de vida era considerado baixo.

Os filhos foram registrados com nomes de pessoas importantes do mundo científico, cultural e artístico. Adão e Eneida acreditavam que influenciariam a personalidade dos pimpolhos.

O nome de Osvaldo Cruz coube ao mais velho; o de Jorge Amado, ao do meio, e o de Roberto Carlos, ao caçula.

Os pais não se preocuparam em agregar ao nome principal o sobrenome dos dois primeiros ilustres homenageados: Cruz e Amado.

– Conhecemos tantos Kenedy, Jonhson, Fitipaldi… – disse Adão, em resposta às críticas feitas pelo Notário, por ocasião do registro do caçula, recém-nascido.

Antes de deixar o cartório, Eneida ainda se dirigiu ao ousado escrivão:

– O próximo será Romário.

– Romário, não! Ronaldo. A bola do Romário murchou. Ronaldo, para chamarmos de Ronaldinho, um fenômeno em matéria de casamento; aos vinte e quatro anos já casou duas vezes! – concluiu Adão, aliviado com a resposta dada ao funcionário do Registro Civil.

Deram aos filhos nomes de ilustres personalidades nacionais, pois Adão dizia-se nacionalista ferrenho, contrário ao modismo de palavras estrangeiras.

Acrescentaram aos prenomes dos filhos a expressão “Azevedo”. Azevedo designava tradicional família oriunda do município onde nasceram os pais dos meninos, cujos avós se revezavam nos cargos de prefeito e vereador.

Os pais de Adão e Eneida mantiveram o poder político por mais de duas décadas, até caírem em desgraça, rejeitados pelo voto popular.

O eleitorado jovem resolvera acabar com o coronelismo na região. Os antigos copiaram o gesto dos mais novos. Aproveitaram o baixo conceito dos políticos e iniciaram uma renovação sem precedentes.

Altos funcionários públicos, ex-prefeitos, ex-deputados e ex-senadores eram presos quase diariamente. Os “honrados” congressistas, na vigência de seus mandatos, não podiam ser detidos pela polícia. Gozavam de imunidade parlamentar. Defenestrados de seus cargos eletivos, por absoluta escassez de votos, perdiam a regalia.

Tornara-se comum ver suas ex-excelências algemadas diante das câmeras de televisão, algumas com os paletós a encobrir-lhes os punhos vermelhos e vincados pelo metal que os manietava.

Os telespectadores exultavam com aquelas imagens. Ficavam aborrecidos, porém, quando os viam em liberdade, não raro postergada indefinidamente, provocando a ira do cidadão honesto, cada dia menos esperançoso e mais decepcionado com a justiça lenta, precária e tendenciosa.

Os filhos de Adão não tinham em quem se espelhar. Os exemplos do homem público os tornariam desonestos, se decididos a imitá-los.

Negligenciaram os estudos.

Trocaram os livros pela televisão.

E pelos videogames.

Na TV, viam cenas da marginalização institucionalizada, da violência crescente, do descaso pela coisa pública, e da libertinagem dos programas patrocinados por grandes empresas.

Tudo sem punição.

“O que fazer?” – perguntavam-se os pais, cada vez mais preocupados, enquanto os filhos aderiam à música eletrônica e aos shows das bandas de Rock, quando não se deixavam viciar nas drogas.

A promiscuidade comprometia a saúde e o futuro da juventude, alienada e irresponsável.

Adão mostrava a cada filho o exemplo de seu respectivo xará:

– Osvaldo Cruz, sente-se aqui! – chamou o mais velho, antes de puxá-lo para junto de si. – Espelhe-se no exemplo de teu homônimo, o outro Osvaldo, nascido em 05 de agosto de 1872, em São Luis de Paraitinga, São Paulo. Foi um homem notável e muito estudioso. Formou-se em medicina aos vinte anos de idade. Estagiou em Paris, principalmente no Instituto Pasteur. Tornou-se um grande cientista, designado pelo governo brasileiro para combater a epidemia ocorrida em Santos e em outras cidades portuárias, a peste bubônica.

Osvaldo, o de sobrenome Azevedo, filho de Adão, ouvia o pai com certa indiferença. Quando este pronunciou a palavra bubônica, perguntou intrigado:

– O que significa bubônica?

– Nunca ouvistes falar da peste bubônica? O que te ensinam na escola, menino? – perguntou Adão, decepcionado e preocupado com o nível de ignorância do filho.

– Ah, pai, deixa pra lá!

– A peste de que falo é uma doença infecto-contagiosa, manifestada sob a forma bubônica, provocada pelo Bacillus Pestis, transmitido pela pulga do rato. Tornou-se epidêmica em todo o mundo e, no Brasil, foi combatida por teu xará, o grande Osvaldo Cruz!

Osvaldo Cruz Azevedo nada mais quis ouvir. Retirou-se e foi à televisão ver o clipe de uma banda de Rock. O pai ficou a olhá-lo à distância. O nome escolhido para o filho não influenciara a sua formação educacional e psicológica.

– Jorge Amado, sente-se aqui! – chamou o segundo rebento, apontando-lhe a cadeira vazia ao seu lado.

– Oh, pai, estou jogando videogame! Aproveito enquanto o Roberto Carlos dorme. O que é?

– Venha cá, garoto! Sabes quem foi Jorge Amado?

– Claro que sei. Joga no Barcelona. Lá, eles o chamam de…

– O que é isso, pirralho? Jorge Amado foi um grande escritor brasileiro, nascido na Bahia, autor de vários romances. Seus livros foram traduzidos em muitos idiomas, mundo afora. Nunca ouvistes falar de “Gabriela, Cravo e Canela”?

– Claro, pai. Dia desses a vi na televisão. Que mulher! Hoje, mora nos Estados Unidos. Uma gata! – concluiu Jorge Amado, o segundo filho de Adão, naquela época com doze anos de idade.

O pai ficou encabulado. E, mais ainda, decepcionado com o aprendizado do filho na escola.

– Saiba, pelo menos, que o grande Jorge Amado foi membro da Academia Brasileira de Letras…

– Aquela academia de ginástica… – arrematou o rapaz, totalmente ignorante.

Roberto Carlos, o Azevedo, acabara de levantar-se da cama. Ainda esfregava os olhos com as costas da mão esquerda. Comia um sanduíche de bacon com ovos fritos. Sequer cumprimentou o pai, ainda sentado em sua cadeira interrogativa.

– Senhor Roberto Carlos! Desejo saber se pretendes obter o êxito de teu xará, cantor de grande expressão popular e autor de uma infinidade de discos gravados. Até em espanhol! – concluiu Adão, admirado da versatilidade do renomado compositor.


A conversa com o caçula dos filhos não trouxe nenhuma surpresa ao desiludido pai. O garoto, como os outros, de nada queria saber.

O tempo passou de repente, como diz certa música popular. Os filhos de Adão e Eneida tornaram-se adultos e independentes. Os pais suportavam o peso dos anos, não muito contentes com o destino dos filhos. Osvaldo Cruz estava empregado como porteiro de um hospital; Jorge Amado tornou-se apontador do jogo do bicho e Roberto Carlos vendia discos copiados no computador.

Adão, desanimado com o progresso dos filhos e descontente com o resultado das escolhas que fizeram para enfrentar a vida, deixou de acreditar que nomes de ilustres personalidades influenciam a vida e o caráter de seus xarás.

Eneida, por sua vez, estava feliz; embora os “garotos” tivessem escolhido modestas atividades laboriosas, as exercitavam com honestidade…

– “Honestidade?” – perguntou-se ao lembrar que, excetuando Osvaldo Cruz, como porteiro de um hospital, Jorge Amado e Roberto Carlos escolheram o caminho da ilegalidade: apontador do jogo do bicho e vendedor de CDs piratas.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O pecador renitente (conto)

Jorge levantou-se da cama, olhou em volta como se procurasse alguém para dirigir a palavra e desejar-lhe bom dia. Os olhos ardiam, o corpo doía e as pálpebras teimavam em se manter fechadas; queriam voltar ao sono que ele tanto insistia em deixar para trás.

A noite mal dormida marcou o rosto de Jorge com olheiras escuras, impossíveis de ocultar; as mãos tremiam, a cabeça latejava e o estômago embrulhava. Bocejou, suspendeu a manga do pijama e consultou o relógio que anunciava dez horas.

A manhã estava adiantada.

O calendário afixado à parede exibia a figura de encantadora jovem em trajes menores, sensual e provocante. A retina quase não liberava a imagem da exuberante mulher para que ele pudesse ver o dia expresso na folhinha: 22 de abril.

Olhou para a mesinha de cabeceira e contemplou o porta-retrato com a foto da mulher, a quem não via há quase três meses. Tomou a fotografia nas mãos trêmulas e beijou o vidro frio, sujando-o de lágrimas.

No silêncio do quarto, lembrou-se da noite anterior, passada na companhia de amigos, em interminável bebedeira. Sentou-se numa cadeira e deu asas ao pensamento, que voou de volta ao passado. Lembrou-se de momentos às vezes felizes, outros, amargurados e tristes.

Sentado do lado direito da cama desarrumada e fria, os olhos fixos no assoalho de madeira, pensou na última discussão que tivera com a mulher, Doralice, jovem senhora de vinte e três anos, filha única a quem os pais devotavam extremado amor.

Naquele 12 de fevereiro, data do aniversário de Doralice, Jorge chegara em casa embriagado e violento. Xingou e espancou a mulher. Empurrou-a de encontro à parede, sem que ela esboçasse defesa ou resistisse às suas investidas grosseiras e covardes. De tão bêbado, dormiu no assoalho da sala, por não ter conseguido chegar ao quarto do casal.

No dia seguinte, ao abrir os olhos viu a mulher ao seu lado, de pé. Ela portava uma bolsa com roupas e objetos pessoais. Triste, os olhos vermelhos, castigados pelas lágrimas derramadas durante a noite, falou que o casamento estava acabado; ela iria morar com os pais, pois não suportava mais suas bebedeiras, violência e irresponsabilidade.

Saiu sem despedidas.

Não chorou nem se voltou para vê-lo pela última vez.

Esse incidente ocorrera há quase três meses. Depois, as coisas somente pioraram para ele. Terminou por ser dispensado do emprego. Como recursos financeiros, restavam o que sacara do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e as parcelas do Seguro-desemprego.

O que seria depois, não sabia.

Levantou-se da cama meio cambaleante, olhou novamente a fotografia da mulher, colocando-a em cima da mesinha de cabeceira. Em seguida, foi ao banheiro.

A água fria ajudou-o a afastar o sono. Ao vestir a roupa, rasgou a calça quando o pé enganchou na abertura em que passaria a perna. Tropeçou e caiu. Levantou-se, dirigiu-se ao armário e escolheu nova peça do vestuário. Enquanto fazia a barba, cortou o lado direito do queixo, cujo sangramento somente estancou após colocar pequeno chumaço de algodão. Escovou os dentes, ficou nauseado e vomitou uma água verde, amarga e indicativa do mal provocado pela bebida.

Antes de lavar o rosto para retirar os últimos vestígios de sangue, ligou o pequeno rádio sobre a pia. Embora desligado, o receptor sintonizava estação da Igreja Mundial do Reino Divino. Maria, a faxineira, o deixara assim quando fizera a limpeza da casa no dia anterior.

Nas oito horas trabalhadas como diarista, Maria ligava o rádio ao chegar e somente o desligava quando terminado o serviço. Os vizinhos já haviam reclamado do barulho produzido pelas músicas e pregações evangélicas.

Ela não cansava de ouvi-las.

E em alto volume.

No rádio, em sua pregação exaltada e vibrante, o pastor dizia, ao citar os versículos 1 e 2 do Salmo 51: “Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me completamente da minha iniqüidade e purifica-me do meu pecado”.

Jorge ouviu o texto bíblico e o repetiu para si: “… Lava-me completamente da minha iniqüidade… purifica-me do meu pecado”. Depois, pensou: “são tantas as minhas faltas que Deus teria dificuldade em perdoá-las”. Somente se deu conta da blasfêmia, ao ouvir o pregador citar Jesus, segundo Mateus, capítulo 8, versículo 26: “… Por que temeis, homens de pouca fé?...”.

Jorge não mais insistiu.

Entendeu o recado de Deus e chorou convulsivamente. Ao controlar-se, pediu contrito: “Senhor, restitui-me a dignidade!”.

Passaram-se alguns meses. Sem emprego, Jorge vivia dos parcos recursos remanescentes da rescisão contratual. Disposto a mudar de vida, começou a freqüentar a Igreja Mundial do Reino Divino.

Tornou-se “crente”.

Agora era “bíblia”.

Curou-se do alcoolismo.

Em pouco tempo, estava novamente empregado, ganhava razoável salário, suficiente para suas despesas. Reconciliou-se com Doralice; voltaram a morar juntos. Meses depois, nasceu o primeiro filho do casal.

A vida mudou.

Para melhor.

Jorge pensava em ser empresário. Freqüentava a igreja com assiduidade e participava da “corrente da prosperidade”.

Meses depois, montou o próprio negócio.

Tornara-se um próspero comerciante.

Não faltavam elogios à denominação que o acolheu. Aos amigos, dizia: “Sou dizimista e contribuo generosamente quando participo da corrente da prosperidade”. Repetia isso nas entrevistas gravadas para testemunhar as graças alcançadas.

Certa vez, em animado culto da Igreja Mundial do Reino Divino, Jorge ouviu do pastor o desafio cumprido por muitos dos fiéis. Dizia o pregador:

– Deus nos dá tudo. Temos a obrigação de devolver não apenas dez por cento do que Ele nos concede, mas noventa por cento de tudo que angariamos em recursos materiais. “Fazei prova de mim, diz o Senhor” – repetia o reverendo, entusiasmadamente. – Portanto, quem deseja fazer prova de Deus e, pela fé, entregar-Lhe seus bens materiais? Deus os devolverá multiplicados!” – insistia o pastor com eloqüência, citando também o exemplo de Abraão, a quem fora pedido seu único filho.

Em casa, Jorge fez um balanço de sua vida: “Há pouco tempo eu era um ímpio, vivia no pecado, bebia e fumava desbragadamente, o dinheiro não era suficiente; hoje, tenho casa, negócio próprio, alguns imóveis alugados. Venderei meus bens e doarei o dinheiro à igreja; por certo terei muito mais no futuro”.

A ganância de Jorge subiu-lhe à cabeça.

Um dia, chegou à igreja resoluto. Entregou ao pastor um cheque ao portador, produto da venda de seus bens materiais. A partir desse momento, passou a aguardar o resultado de sua generosa oferta.

Os negócios tomaram rumo diferente.

As receitas diminuíram com o passar dos dias, os compromissos vencidos foram protestados, enviados a cartório por falta de pagamento. A situação financeira declinante também afetou o seu padrão de vida. Em casa, começaram os problemas de ordem familiar: a mulher reclamava da falta de alimentos; da empregada despedida para reduzir despesas; do atraso no pagamento do aluguel da residência e do colégio das crianças. Doralice estava grávida pela segunda vez, o plano de saúde fora suspenso, também por inadimplência; a casa não tinha o conforto da anterior, que fora vendida e o dinheiro doado à igreja; enfim, uma situação de desespero.

– O que fazer? – perguntou-se angustiado.

As coisas não davam sinais de melhora.

Ele iria ao pastor.

Em seu gabinete pastoral, sobriamente mobiliado, temperatura ambiente em torno de vinte graus Celsius (lá fora o termômetro marcava trinta e oito), o reverendo saudou o visitante:

– A paz do Senhor, irmão!

– A paz do Senhor – repetiu Jorge, automaticamente.

Sentou-se e contou ao reverendo as inúmeras dificuldades enfrentadas. Suas provações foram narradas ao líder espiritual que o ouvia com conselhos na ponta da língua:

– Paciência, irmão. O tempo de Deus não é o seu tempo. Tudo será resolvido; amém?

Mantenha a fé e não deixe de participar da corrente da prosperidade.

Meses depois, cada vez mais pobre – quase falido –, Jorge retornou ao pastor. Pediu nova orientação, voltou a falar do seu sofrimento, de suas dificuldades financeiras, de seus problemas familiares...

– Que é isso, irmão! Onde está sua fé? – perguntou o homem de Deus, virando as costas para Jorge para receber um cheque de mais uma ovelha.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Deverei roubar, acobertado pela impunidade? (crônica)

Deverei roubar, acobertado pela impunidade?

Sim ou não?

Não... sim... talvez...

As respostas formuladas por mim lembram o seriado de televisão em que o personagem Zeca Diabo enchia-se de dúvidas ao responder perguntas que excediam o seu entendimento, exorbitavam a sua capacidade de raciocínio ou ultrapassavam os limites da moral, do bom senso, da honestidade, do pudor, da vergonha propriamente dita.

Falar em Zeca Diabo, me traz à lembrança outro personagem da trama, o famoso Odorico Paraguaçu, representando o político profissional, inescrupuloso, aproveitador e corrupto.

Deverei roubar, acobertado pela impunidade?

Roubar é crime, passível de punição. As leis que regem a sociedade não admitem desvios de conduta, sejam o roubo, o peculato, o falso testemunho ou qualquer delito que agrida a moral e os bons costumes. Não devemos roubar. Nem eu, você, o presidente da República, o governador de estado, o político, qualquer homem público ou o cidadão comum.

Ninguém.

A lei é severa e igual para todos (?).

Os noticiários do rádio, televisão, jornais, revistas e conversas de ruas e de botequins, com freqüência dão conta de desvios de verbas, má aplicação de recursos públicos, enriquecimento rápido e injustificável de políticos e de seus correligionários.

É sabido que muitos políticos, antes pobres – alguns de origem franciscana –, hoje são ricos senhores de incalculáveis bens, embora tenham vivido modestamente remunerados pelo Tesouro do Estado.

O Imposto de Renda não os alcançou em nenhum estágio de seu enriquecimento, possivelmente ilícito. A justiça não os julgou nem os condenou. O eleitor também não os puniu, negando-lhes o voto.

Jamais foram castigados.

Deverei roubar, acobertado pela impunidade?

Embora, inicialmente, tenha titubeado em responder entre o “sim”, o “não” e o “talvez”, menos por indecisão, mais para lembrar a representação cênica de folclóricas figuras, assemelhadas aos políticos de hoje, respondo:

Não!

Roubar é vergonhoso.

Mesmo se dispusesse de foro privilegiado como os parlamentares, não o faria jamais.

Precisamos criar bons modelos para a nova geração.

Ser honesto é imperioso hoje e nos dias vindouros.

Conversa fiada (crônica)

Conversa fiada é como conversa de botequim. Despropositada, vazia, que não leva a nada. As pessoas sequer prestam atenção à narrativa. É uma estória que não merece crédito, igual às conversas de político. Ninguém acredita nelas.

Há alguns dias, numa roda de amigos, contei-lhes um sonho pavoroso que tive na noite anterior. O meu sonho situava-se no próximo ano de 2003. Haviam sido realizadas as eleições presidenciais e Lula, tendo recebido expressiva votação, era o novo presidente da República.

Eleito, nomeara seus ministros, disposto a governar com o povo, pelo povo e para o povo. Eram muitos os Ministérios, mais que os atuais, pois precisaria abrigar em seus quadros, ilustres figuras da esquerda que trabalharam pela vitoriosa eleição, e da direita, para contemplar os que, embora não tivessem se esforçado para elegê-lo, fariam parte do governo, emprestando-lhe solidário apoio político.

Mercadante, como ministro da Fazenda, suspendera o pagamento da dívida e declarou moratória até que conceituada auditoria – uma equipe da esquerda francesa – confirmasse o total do débito, tendo o cuidado de averiguar se a dívida já não teria sido quitada por valor superior aos empréstimos concedidos com aval do FMI.

No Ministério da Reforma Agrária, José Rainha dava início a ousado programa de distribuição de terras; contava com a assessoria de Pedro Barbudo, do Distrito Federal, exímio conhecedor da política de distribuição de lotes, implantada pelo governador Joaquim Roriz. As invasões promovidas pelo MST não mais ocorreriam, pois o novo programa contemplaria ampla e irrestrita distribuição de propriedades, adquiridas de latifundiários que, em pagamento, receberiam títulos da dívida agrária, vencíveis em trinta anos. A primeira parcela, claro.

A política de habitação popular, jóia da coroa petista, estava sendo executada por decreto, em ritmo acelerado. Todo proprietário de prédio com mais de sessenta metros quadrados de área, teria o excesso confiscado e adotaria, como vizinhos, nos diversos cômodos de sua antiga casa, qualquer portador de uma estrela vermelha, tatuada na testa, idéia essa de autoria do ministro da Divulgação Geral, Anthony Garotinho.

Os Ministérios eram tantos que chegaram a superlotar o meu sonho. Lembro-me de serem ocupados por Jorge Bonhausen, Ciro Gomes, Inocêncio de Oliveira, Antônio Carlos Magalhães, todos os demais caciques do PFL e parte do PMDB. O Itamar, satisfazendo antiga aspiração, também estava na nova equipe como embaixador do Brasil na Itália.

Iria solteiro?

Alguns amigos, que me ouviam narrar o sonho, mais parecido com um pesadelo, suspiraram aliviados, quando alguém falou:

“Sonho é conversa fiada!”.

Que alívio!

domingo, 12 de julho de 2009

Ilusão da vida (conto)

Maria Rosa comprou a revista Show do Milhão, do SBT, depois de economizar em gastos com o transporte coletivo que a conduzia ao trabalho todos os dias.

Percorreu a pé os cerca de oito quilômetros entre sua casa e a residência da patroa, até conseguir os três reais necessários à aquisição da famosa revista.

Enfrentou o frio das manhãs de fim de outono com resignação. “Valeria a pena”, pensava ela. Quem sabe o esforço não seria recompensado com o sorteio para participar do programa? Seria emocionante encontrar-se frente a frente com seu ídolo maior, Sílvio Santos, em quem um dia prometera votar para presidente da República.

Diariamente, Maria Rosa elevava suas preces à Deus, em fervorosa oração. Pedia-Lhe a graça de ser contemplada no sorteio que a levaria ao Show do Milhão. Freqüentadora assídua dos cultos da Igreja Mundial do Reino Divino, não duvidava do milagre.

Sentia a dádiva cada vez mais próxima.

Maria despachou o cupom pelos Correios.

Passados os dias, o telefone tocou na casa de Dona Alice, para quem trabalhava. Baixou o volume do rádio, que tocava estridente música evangélica, e atendeu à chamada. Julgava ser o pastor da igreja que, insistentemente, ligava para lembrar-lhe o pagamento do dízimo no final do mês. Alegre, como sempre, falou ao colocar o fone no ouvido:

– A paz do Senhor, irmão!

– Gostaria de falar com a senhora Maria Rosa, por favor!

– Pensei ser o pastor Arnaldo. Desculpe! Que Deus também lhe abençoe grandemente. É a Maria Rosa quem fala. O que deseja?

– Aqui é do SBT. A senhora foi sorteada para participar do programa Show do Milhão, no próximo dia dez.

– Oh, Deus, aleluia, Jesus! – disse entre soluços e louvores ao Senhor.

– A senhora virá acompanhada? Precisamos saber para emitir as passagens de avião e reservar os aposentos no hotel.

– Sim, irei com minha patroa, Alice Martins.

– Tudo bem, boa sorte! – desejou o representante do SBT.

Maria Rosa não se continha de alegria. Colocou o telefone no gancho e dirigiu-se à cozinha; ajoelhada, orou ao Senhor, agradecida. Bastante ansiosa, aguardou a chegada de dona Alice, vinda de uma repartição pública municipal, depois de “exaustivo” dia de trabalho.

Maria contou a graça alcançada e confirmou com a patroa se esta a acompanharia a São Paulo.

– Sim, irei com você – respondeu.

Em seguida, Maria despediu-se de dona Alice e foi ao ponto do ônibus que a levaria à modesta casa onde morava na companhia dos filhos, José, de treze anos, e Laura, de dez.

Angustiada, aguardava o transporte chegar.

Enquanto isso, pensava na viagem de avião; imaginava-se vestida com a roupa domingueira, via-se hospedada em hotel de luxo e, o que era melhor, sonhava em receber os “trinta mil real” das mãos do adorável Sílvio Santos. Com esse dinheiro, compraria a casa própria, construída em alvenaria de tijolos, com cerca de sessenta metros quadrados, banheiro e vaso sanitário abrigados do sol, da chuva e do sereno.

Estaria rica dali a poucos dias.

Restava-lhe aguardar.

Distraída em seus pensamentos, não percebeu a aproximação do Chevette dirigido por um bêbado irresponsável, que pôs fim à sua vida.

Maria morreu sem conhecer Sílvio Santos.

O sonho da casa própria não se realizou.

Os filhos, órfãos, ficaram mais pobres ainda.

Fotografia social (conto)

A idade avançada e a aposentadoria afastaram-me do convívio dos colegas de trabalho. Levaram-me a dias solitários e tristes. Recolhi-me à rotina doméstica, ao lado da mulher, mergulhado em lembranças distantes, nem sempre felizes.

Depois de algum tempo, refugiei-me na casa de uma filha, aborrecido por familiares insatisfeitos com a minha presença.

O neto e o genro me consideram inválido.

“Velho chato” – diz o garoto, revoltado com minhas reclamações; “não é assim, seu Leandro” – ensina o genro, que se julga mais inteligente; “aí não, papai. Oh, meu Deus!” – retruca a filha, após tomar-me das mãos um objeto que eu mudara de lugar.

A aposentadoria é para o velho prêmio e castigo. Principalmente castigo.

Residindo com parentes, estou sujeito a constrangimentos que quase sempre magoam. Cansado de tudo, tomei uma decisão: diariamente, depois do desjejum, visto o velho casaco de lã, ponho a boina recebida de presente no último Natal e vou à cidade, de ônibus.

Tenho direito ao passe-livre, em virtude da idade avançada.

Agradeço a Deus pela saúde. Do contrário, seria obrigado a interromper esse hábito de grande importância para mim. Afinal, foi assim que me livrei da solidão e evitei os aborrecimentos e as irritações, ao ver as coisas em casa mal conduzidas, realizadas com desleixo, com má vontade. O desperdício de dinheiro era o mais incômodo. Ninguém ouvia a opinião, os conselhos ou as observações que a experiência dos anos me concedeu.

Minha mulher é uma santa criatura. De nada reclama e ainda dá razão aos outros membros da família. Eu, sim, sou o desajustado, o problema. Deixei de sê-lo, portanto, num dia de insuportável convivência. A partir daí, adotei a decisão de sair à rua todos os dias.

Ao entrar no ônibus, cumprimento o motorista, conhecido de longa data. O condutor tudo faz para evitar que eu use o veículo do patrão, cuja linha fora obtida por regime de permissão, graças a favores políticos. Não me incomodo com o seu desprezo por mim. Preocupo-me, sim, com minha segurança, ameaçada quando ele resolve partir antes de eu adentrar completamente à viatura. Ao invés de repreendê-lo, esboço um sorriso, acompanhado de sonoro “bom dia!”.

O motorista não responde.

Sempre fica irritado com minha presença.

E com a de outros velhos que, como eu, não pagam a passagem.

Dentro do ônibus viaja gente de todo tipo. Honrados trabalhadores misturam-se aos marginais que circulam livremente pela cidade. A maioria veste calças jeans e blusas de malha com propaganda de empresas ou de candidato a deputado em eleições passadas. A mochila levada a tiracolo serve para guardar apetrechos de trabalho; no caso de meliantes, esconde a arma que poderia tirar a vida de qualquer de nós que ali somos transportados, sem nenhum conforto e quase nenhuma consideração.

Dificilmente, viajo sentado. Os passageiros não reconhecem o direito do idoso, desrespeitado até pelo agente público. Ruim é quando estou sentado em uma poltrona, com o assento prestes a rasgar, as molas do estofado ameaçando-me beliscar as nádegas ou o vizinho do lado fica a palitar os dentes, a mascar chiclete ou a brincar com a prótese dentária, fazendo-a entrar e sair da boca, num ritual nojento e deseducado.

Nessas viagens diárias, já presenciei muitos acontecimentos deprimentes, inusitados e prosaicos. As discussões são raras e quando acontecem é porque o passageiro que viaja em pé descuida-se e deixa suas “partes” tocar as da mulher acompanhada do marido.

Viajando sozinha, raramente reclama.

O ônibus pára e eu desço na praça principal da cidade, local de grande movimento. A aglomeração humana é intensa, com pessoas transitando de um lado para outro, algumas apressadas, outras esquecidas do tempo, descontraídas e displicentes.

Os banquinhos são dispostos em diversos lugares, protegidos do sol pelas árvores que oferecem sombras generosas como abrigo, porém sujos do esterco dos pombos que infestam a região.

Costumeiramente, procuro um papel dos muitos que poluem o logradouro e esvoaçam ao vento, a fim de limpar a sujeira dos columbídeos. Sentado, cruzo as pernas e leio pedaços de folha de velhos jornais.

Já me aconteceu de sujar as mãos com o cocô dos pombos, esquecido de que aquele pedacinho de papel servira para limpá-lo minutos antes.

É assim que vejo o tempo passar.

Ocupo as horas com os acontecimentos do dia, protagonizados por pessoas de caráter restritivo ou extremamente condenável.

Leio bobagens divulgadas pela imprensa. Certa vez, li o seguinte: “linda garota, seios fartos, lábios voluptuosos, pernas longas e torneadas, bumbum arrebitado, dezoito aninhos, ‘primeira rodagem’ (assim mesmo, entre aspas, para chamar atenção). Serviço completo”. (desse jeito, grifado)… Outro anuncia: “rapaz loiro, olhos azuis, musculoso, b… d…, atende ambos os sexos…”

Aquele pedaço de jornal pareceu-me tão sujo quanto os excrementos dos columbídeos que eu acabara de limpar.

O mundo é nojento, ressalvadas as exceções. A prostituição juvenil espalha-se como praga. Os jovens optam pela libertinagem, pela luxúria, incentivados pelos programas de televisão e pelo prazer desregrado, que poderá contagiá-los por doenças incuráveis, como a AIDS, e até levá-los à morte.

“Dezoito aninhos”! Fiquei com aquela expressão gravada na mente e lamentei o destino da jovem ninfeta, ainda quase criança.

O banquinho em que costumo sentar é sempre o mesmo, construído de concreto e de cor escurecida pela fuligem do asfalto. Embora de estrutura maciça, revela pequena depressão, decorrente do peso dos corpos obesos. O meu, particularmente, é bastante pesado.

A obesidade parece ser própria dos velhos. Minha família, infelizmente, tem essa característica genética.

Sentado há alguns minutos, fui procurado por uma moça, cuja idade não ultrapassava os vinte anos. A garota trazia uma criança de alguns meses escanchada na cintura, à moda dos índios. Era jovem e não se apresentava suja e maltrapilha como a maioria dos pedintes. Confidenciou-me alguns particulares de sua vida. Era nordestina do Piauí. Segundo ela, há quase dois dias nada comia de substancial e por isso me pedia uma refeição qualquer. O filho comera biscoitos e restos de sanduíches ofertados por algumas pessoas.

Respondi àquela senhora que minha capacidade financeira era de pouca valia, pois, como aposentado, recebia “proventos de fome”.

Ao pronunciar o nome dado à minha modesta aposentadoria, lembrei-me do programa Fome Zero, que o governo alardeia como principal realização, sem conseguir implementá-lo de forma adequada.

Incrédula, a moça me fez uma proposta:

– Por dez reais farei sexo com o senhor. Não se preocupe que saberei animá-lo, se precisar. Eu necessito desse dinheiro para completar a compra de remédio para meu filho. Por favor, ajude-me!

– Moça, disse-lhe eu, não se prostitua por tão pouco. Nem mesmo por muito. Mantenha a dignidade. Você poderá destruir sua vida pelo vírus da AIDS ou, no mínimo, resultará contaminada por outras doenças sexualmente transmissíveis. Não faça isso!

– O senhor parece diferente de outros com quem conversei a esse respeito. Eles é que me propõem essa alternativa vergonhosa. A necessidade obrigou-me. Acredite!

Ao final, aquela senhora chorava abraçada ao filho. Abri a carteira e entreguei-lhe a última cédula que possuía. Era o saldo de minha aposentadoria, recebida há poucos dias.

Naquela hora, renunciei ao almoço.

Mãe e filho foram embora. Segui-os com a vista, até vê-los desaparecerem por entre os transeuntes. Esperava não encontrá-la mais a mendigar em troca de favores sexuais.

Torci para aqueles dez reais serem aplicados na compra do medicamento.

Horas depois, já no início da tarde, um cidadão foi agredido por um trombadinha. O meliante roubou-lhe a carteira. O homem não resistiu, dominado pela surpresa.
Nenhum policial socorreu a vítima, embora dois deles patrulhassem as ruas. Conversavam animadamente no instante da agressão. Possivelmente, sobre as constantes derrotas do Flamengo.

Chegou a hora de voltar para casa.

Antes, porém, assisti a prisão de bandidos envolvidos em assalto frustrado; presenciei o furto de um automóvel estacionado em um canteiro de flores; ouvi o sermão de um pastor evangélico pregando sobre a libertação do pecado.

Os transeuntes não davam atenção à Palavra.

E vi mais:

Sob as marquises, mendigos e meninos de rua acomodavam-se para dormir nas próximas horas.

Os mendigos bebiam pinga.

Os garotos cheiravam cola.

Transpus o portão da casa da minha filha no início da noite.

Estava faminto e cansado.

O ônibus que me transportou, somente não foi assaltado graças à firme disposição de um policial à paisana. O militar abordou os marginais e abortou-lhes a ação criminosa.

Amanhã retornarei àquele logradouro.

Não sei se voltarei de lá em condições de narrar novos episódios da violência urbana que nos assola de maneira progressiva e assustadora.

Curiosidades médicas (crônica)

A ciência, esse conhecimento amplo, racional, disciplinado e metódico, adquirido pela reflexão e pela experiência, é uma extraordinária conquista da humanidade.

Todos os ramos da ciência são importantes. A medicina, porém, é a mais fantástica atividade exercida pelo homem. Reúne um conjunto de conhecimentos que são utilizados na manutenção da saúde, na prevenção e no tratamento das doenças. É a ciência de curar. Numa feliz contradição, provoca e elimina dores físicas, enquanto o paciente, curado na maioria das vezes, agradece ao mestre dessa ciência, que também é arte.

Li a obra do doutor Armando José China Bezerra, intitulada “Admirável Mundo Médico”, lançamento comemorativo aos quarenta e um anos de instalação do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal. Senti irresistível desejo de compartilhar com os amigos, para quem escrevo sem pretensões, preciosidades deste maravilhoso “Mundo Médico” em que viveram e ainda vivem boa parte da minha família: tios, primos, esposa, filha e genro.

O doutor Bezerra, nas palavras do médico Luiz Fernando Galvão Salinas, que prefaciou a obra, não teve a intenção de escrever sobre a história da medicina, nem de retratá-la cronologicamente. Pretendeu descrever “passagens pitorescas do admirável mundo da Medicina, cujas maravilhas superam, em muito, eventuais horrores”.

Não reproduzirei literal nem inteiramente os textos escritos pelo autor. Procurarei resumir dados interessantes, situando-os tão cronologicamente quanto possível, sem, todavia, desvirtuá-los. Também não pretendo desfigurar, com minha medíocre redação, as ricas e preciosas curiosidades médicas coletadas e descritas com tanto esmero pelo insigne autor.

São informações e constatações situadas nos primórdios da existência humana e nos fins da Idade Média.

Vejamos como ficaram:

Hipócrates, nascido no ano 460 a.C., na ilha de Cós, na Grécia, era filho e neto de médico. Viveu até aos oitenta anos e é considerado o “Pai da Medicina”. O Juramento de Hipócrates é o primeiro código moral e ético aplicado aos que exercem a medicina como profissão.

O diploma de médico foi instituído e regulamentado na Roma antiga no terceiro século da nossa era. Seus portadores, para obtê-lo, obrigavam-se a apresentar atestado de boa conduta, fornecido por autoridades policiais. Não teriam acesso ao diploma de médico os estudantes que tivessem tirado férias prolongadas ou que freqüentassem os famosos bordéis da época.

“O símbolo da Medicina consiste em um bastão, no qual se encontra enrolada uma serpente. Originado na Mesopotâmia, tem na serpente o simbolismo da saúde, vez que a cobra mantém-se saudável e rejuvenescida em virtude da troca da pele. Esculápio, o deus da medicina, pai de Panacéia, a deusa da cura, e de Hígia, deusa da saúde, de cujo nome deriva a palavra higiene, para andar apoiava-se em um bastão como esse”.

Ao dissecar corpos de criminosos ainda vivos em prisões da Alexandria, Herófilo e Erasístrato – que viveram entre os anos 335 e 250 a.C. – contribuíram para o conhecimento da anatomia humana. Coube, ao primeiro, Herófilo, o título de “Pai da Anatomia”, e a Erasístrato, o de “Pai da Fisiologia”. Não existia ainda a anestesia. Imagine, leitor, o sofrimento cruel a que foram submetidos esses criminosos.

As dores, porém, foram poupadas à rainha Vitória, quando do parto do príncipe Leonardo. A soberana inglesa pediu ao médico que lhe aplicasse anestesia. A ordem contrariava o pensamento da época, segundo o qual, se os gritos da parturiente não chegassem a Deus, Ele não amaria o filho nascido. São coisas da realeza, que somente permitiu que os príncipes fossem vacinados contra a varíola, após testes realizados em criminosos e crianças órfãs da Inglaterra. Os médicos assírios, em passado bem mais distante, pressionavam a artéria carótida até que o paciente desfalecesse e, portanto, não sentisse dor.

Em 1348, grande epidemia de peste abateu-se sobre a Europa, provocada pela picada da pulga do rato. Morreram 25 milhões de pessoas. As mortes chegaram a ser atribuídas aos judeus, que foram perseguidos, torturados e mortos por ordem do Papa Clemente VI.

A primeira transfusão sanguínea foi realizada em 1665, pelo médico inglês Richard Lower, em Oxford, utilizando o sangue de uma ovelha; Jesse Lazear morreu ao se deixar picar voluntariamente por mosquitos infectados pelo vírus da febre amarela, imitando o escocês Patrick Manson que, por sua vez, permitiu que o próprio filho, trancado em um quarto, fosse repetidamente picado pelo parasito da malária; Michael Servetus foi queimado vivo por ter descrito a circulação pulmonar; os egípcios “acreditavam que as fezes contidas nos intestinos eram a matéria pecaminosa do organismo humano, que, acumulada, acarretaria a putrefação e a morte do corpo”.

São passagens realmente pitorescas, algumas horríveis, outras desumanas, porém, incrivelmente fantásticas.

sábado, 4 de julho de 2009

Cultura pra todo gosto (crônica)

Marcelino dizia ser cabra macho. Macho, desses dos c... r... Insistia tanto em defender sua masculinidade, que jamais permitiu ao urologista examinar-lhe a próstata. “Não, cara, sou paraibano; ninguém toca nessa b… que somente a terra há de comer” – repetia para o doutor, todas as vezes que o procurava para tratar da saúde.

Cito essa faceta da personalidade do Marcelino sem qualquer propósito, a não ser o de relembrar a empáfia do personagem ao descrever suas másculas façanhas. Aliás, acho que ele não era arrogante, insolente ou presunçoso. Apenas um gozador.

Marcelino era bastante versátil. Exortava nomes de poetas, escritores, jornalistas, médicos, advogados e de pessoas famosas, dignas de reconhecimento. Importantes personalidades do mundo cultural e artístico mereciam sua admiração e respeito. Políticos competentes, honestos (um número bastante reduzido) e ousados eram alvo de seus elogios em conversas de fins de tarde com os amigos. Também execrava os corruptos, ladrões do erário, usurpadores da coisa pública.

Nesses encontros, divulgava notícias, falava de política, criticava procedimentos econômicos do governo, recitava poemas, cantava músicas populares. Enfim, preenchia as lacunas culturais dos companheiros menos intelectualizados. Preferia poesias de Carlos Drumonnd de Andrade e de Augusto dos Anjos, esse último seu ilustre conterrâneo. Tom Jobim, Chico Buarque e Zezé de Camargo distinguiam-se como compositores favoritos, demonstrando sua versatilidade. Roberto Pompeu de Toledo e Diogo Mainardi, escritores de “pena” imbatível e de elevado saber, diferenciavam-se dos demais jornalistas. Lia-os com veneração.

Crenças, costumes, padrões sociais, nada era desconhecido a Marcelino. Ele não se intimidava diante da ousadia. Certa vez, para escândalo de alguns amigos, recitou trechos de poesia do poeta negro, José Limeira, paraibano como ele.

Limeira era analfabeto.

As rimas do poeta paraibano não obedeciam a nenhum critério, a não ser o de expressar o som entre as palavras na construção de seus versos, às vezes ininteligíveis.

O negro era bom repentista.

Tornara-se conhecido como “O Poeta do Absurdo”.

Fazia jus ao título.

As poesias de José Limeira foram imortalizadas em livro de Orlando Tejo, outro poeta da Paraíba.

Disse Marcelino aos amigos, naquela tarde: "… A pedido de ouvintes, em roda de bate-papo e muita cachaça, Limeira glosou o seguinte mote: E o mundo não tese (de tesão) mais"

E recitou esses versos antológicos, da verve do saudoso poeta:

O velho Tomé de Souza,
Governador da Bahia,
Casou-se no mesmo dia
Com sua esposa;
F… que só raposa,
Pela frente e por detrás,
E depois foram pro cais,
Onde o navio trafega,
Comeram o c… de Nóbrega,
“E o mundo não tese mais”.

Absurdo?

Cultura é isso aí, oxente!

Confissão (crônica)

Seu nome era Lamartine. Lamartine Brasil. Os amigos o chamavam de Lama. Lama, é bom esclarecer, correspondia à redução gráfica de seu prenome. Ele era bastante honesto para que a palavra “lama”, encontrada nas quatro letras iniciais de seu antropônimo, fosse confundida “como aquilo que degrada, envergonha ou avilta o caráter das pessoas”.

Conheci Lamartine há muitos anos. Todos o tinham como cidadão trabalhador, bom companheiro e bom pai. Com o tempo, Lama resolveu entrar na política, com o propósito de contribuir para a moralização das instituições parlamentares. Faria tudo para salvar a dignidade do Parlamento, segundo ele, desacreditado, desmoralizado e apodrecido pela corrupção.

Havia algumas exceções entre os membros da Casa e ele se associaria a esses baluartes da honradez para salvar os recuperáveis e condenar os incorrigíveis. Candidatou-se, recebeu expressiva votação, elegeu-se deputado federal.

No dia de sua posse, discursou impoluto:

– Senhor presidente; senhoras deputadas; senhores deputados; povo brasileiro! Hoje, realizo o sonho de representar meus concidadãos. Em benefício da pátria, darei meu próprio sangue para libertá-la da corrupção. Defenderei a ética na política; jamais transgredirei o decoro parlamentar; nesta e em outras legislaturas, se Deus assim me permitir, manterei fidelidade ao meu partido. O diploma que ora recebo será honrado como exige o povo que me elegeu.



Ninguém o aplaudia.

O discurso continuava em tom veemente.

– Familiares meus não ocuparão cargos em meu gabinete; escolherei colaboradores de reconhecido saber, pessoas honradas e respeitáveis. Cumprirei as promessas de lutar pelo cidadão humilde deste país.

Emocionado, confessou:

– Eu amo esse povo!

Lamartine chorou. Chorou mais duas vezes depois de citar as agruras de sua vida pobre e sofrida. Ele sempre chorava ao citar detalhes de sua infância e o sacrifício da mãe para criá-lo e aos irmãos.

Olhando para a platéia, ainda com os olhos lacrimosos e a voz embargada, disse:

– Não farei parte de conchavos; não me beneficiarei de regalias; não roubarei, se um dia me for concedida oportunidade. Esta tribuna será meu escudo e minha arma. Daqui, defenderei os interesses do povo e denunciarei as maracutaias que me chegarem ao conhecimento. Que se cuidem os corruptos!

Poucos no auditório o aplaudiram.

Nenhum parlamentar apertou-lhe a mão, solidarizando-se com ele.

O tempo passou.

Lamartine aderiu ao esquema de seus pares; esqueceu as promessas de seu discurso de posse; associou-se aos companheiros na disputa por cargos públicos; olvidou as denúncias de seus eleitores; desprezou a ética que defendia com ardor; aderiu aos conchavos políticos; locupletou-se da administração pública; fez-se igual à boa parte de seus pares. Ele adorava ser tratado por ”vossa excelência”, “nobre deputado”, “distinto colega”; qualquer tratamento fidalgo o envaidecia, embora não mais merecesse o respeito dos cidadãos que o elegeram.

Lamartine enganou e mentiu ao povo.

Hoje, o simpático apelido – Lama – soa mal aos ouvidos da sociedade.


quarta-feira, 1 de julho de 2009

A vida no campo é melhor (crônica)

Morar no campo. Ah, que maravilha!

É bonito o anoitecer no campo. Às vezes romântico e nostálgico, porém, agradável e tranqüilo.

Sentado na varanda da casa ou no batente da humilde choupana, contemplando o dia findar-se, o sol diminuir de intensidade e esconder-se no horizonte é um agradável prazer.

Morar no campo. Que tranqüilidade!

Os passarinhos em revoada nos finais de tarde, à procura de abrigo; o gado mugindo no curral, fazendo soar os chocalhos presos ao pescoço, acomodando-se para ruminar e dormir; o guizalhar dos grilos; as estrelas no céu, pontilhando o firmamento com suas luzes cintilantes; o vento frio, soprando forte e ondulando as águas do rio… tudo completa cansativo dia de trabalho.

Morar no campo. Que escolha feliz!

Anoitecer cansado e despertar disposto pelo cantar do galo; ver o sol iluminar a relva, fornecer o calor que conforta e a energia que dá vida; banhar-se em águas cristalinas e mornas; trabalhar a terra; viver a vida.

Se dependesse de mim, entre morar na cidade ou no campo, escolheria a segunda opção. Ali, desfrutaria mais a convivência familiar; usufruiria o prazer de contemplar a natureza; estaria distante da violência urbana, da concorrência no emprego e dos conflitos sociais; moraria modestamente, mas com dignidade; não teria a comodidade dos transportes automotores nem a distração da televisão; não assistiria aos jogos de futebol nem passearia nos shoppings às tardes. Mas, seria feliz.

Se dependesse de mim, moraria no campo.

Não residiria em “barraco”, dividido entre duas ou três famílias, alugado por dois terços do meu pequeno salário; não suportaria o cheiro fétido dos esgotos que serpenteiam em frente à minha casa; não usaria os superlotados transportes urbanos que me levam ao trabalho, quando o tenho; não seria obrigado a abrir as pernas e a elevar as mãos às paredes, para ser revistado pela polícia, que me considera bandido; não seria humilhado pela condição degradante em que vivo, nem enganado por políticos com suas descumpridas promessas da casa própria, que jamais terei.

Se dependesse de mim, não existiriam favelas.

Não teria permitido a proliferação de assentamentos residenciais em áreas que degradam a paisagem urbana; não teria consentido o inchamento das cidades, sem a contrapartida do emprego, da segurança pública, da assistência à saúde e do acesso à educação.

Teria, pelo contrário, promovido o desenvolvimento rural; patrocinado assistência financeira e tecnológica à agricultura e à pecuária; proporcionado ensinamento técnico ao homem do campo; criado pequenas agroindústrias para aproveitar a matéria prima local; envidado esforços para o jovem rural não se sentir atraído pelas ofertas da cidade e abandonar o campo.

Teria, num gesto de visão futurista, ampliado as escolas existentes na zona rural; instalado bibliotecas públicas; oferecido transporte escolar aos alunos; fundado cooperativas de produtores agrícolas; construído centros de saúde, hospitais e postos de polícia.

Teria, com essas providências, aumentado a produção, a oferta de emprego, o nível de escolaridade do trabalhador, a técnica agropecuária, a assistência à saúde e à segurança do cidadão.

Talvez, evitado o êxodo rural.

E, quem sabe, fixado o homem a terra.