segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O ultimato - Capítulo IX - Os especialistas

Leia, a seguir, o capítulo IX de O ultimato. Obrigado. Lamércio.

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A reunião começou na hora aprazada. O chefe cumprimentou os integrantes, sentados e dispostos em torno de uma mesa retangular.

Sem demora, iniciou os trabalhos.

Ainda falava com dificuldade, porém a voz havia melhorado de tonalidade. Encontrava-se mais audível. O agente 253 notou a diferença, satisfeito por ter-lhe receitado um xarope caseiro feito à base de ervas e romã. A meizinha fora enviada pelo coordenador 254, que a comprou no Mercado São Sebastião, em recente viagem a Fortaleza, no Ceará.

Dali a alguns dias, ele estaria curado.

Em seguida, o chefe saudou os presentes e convidou o companheiro 259 a falar sobre a organização. Os coordenadores eram tratados e identificados por números; os demais membros eram conhecidos pelos nomes civis. O agente 259 tinha grande experiência na área de sua atuação.

O chefe pediu-lhe que dissertasse sobre as atividades do grupo, a forma de cooptação de seus aliados, os métodos e estratégias utilizados. Ele, o chefe, insistia em reprisar os conceitos e metodologias da entidade. Só assim, acreditava, o “sentimento maior” da instituição ficaria impregnado na mente de seus integrantes.

Disse o agente:

- Fazemos parte de uma organização informal, secreta, da qual participam centenas de pessoas de ambos os sexos. Atuamos em todo o território nacional. Somos liderados por seis coordenadores e um supervisor. Sete dirigentes. Por que sete? Esse é um número cabalístico, considerado símbolo da perfeição. Acreditamos no valor evocativo do número sete, mágico e quase místico. A organização segue princípios rígidos e definidos. Devotamos à causa um sentimento quase religioso. A nossa finalidade é exigir a devolução do dinheiro público surrupiado em diversas modalidades de corrupção.

- Caçamos o corrupto e o obrigamos a restituir ao povo os valores e bens adquiridos ilicitamente. Primeiro, o identificamos por jornais, revistas, rádios, televisão… por toda espécie de denúncia. Desse ponto em diante, acionamos os nossos contatos. Uma grande rede de informações entra em ação: bancários vasculham contas e aplicações financeiras; funcionários dos cartórios verificam registros de imóveis; fiscais da Receita Federal apuram acréscimos patrimoniais injustificáveis; serventuários da Justiça prestam informações sobre processos em andamento ou engavetados; policiais civis e militares contribuem com experiências e ações estratégicas; jornalistas, advogados, médicos e até religiosos ajudam a cumprir nossa missão. Alguns promotores de justiça e certos juízes também integram a instituição.

- Recebemos as informações em sigilo. Depois de confirmadas, são analisadas por muitos e bons especialistas. Procuramos o corrupto e exigimos que venda os bens adquiridos em suas atividades ilícitas e deposite o produto da operação na conta bancária de uma organização não governamental, da qual falarei adiante.

- Nosso método de persuasão é bastante peculiar: um grupo de trinta homens bem treinados em métodos de tortura física e psicológica procura o indivíduo e o convence a aceitar a proposta. Abordamos o corrupto em ocasiões especiais, quando se encontra sozinho, e o levamos a “dar um passeio”, ao cabo do qual se inicia o processo de devolução da riqueza nacional subtraída. Quando encontramos resistência, adotamos medidas mais eficazes.

O orador calou-se de repente. Estava com sede. Tomou alguns goles de água, depositou o copo sobre a mesa e prosseguiu:

- A ONG encarregada de receber os recursos devolvidos foi constituída no exterior. Denomina-se, sugestivamente, “Recursos Salvados”. O nome lembra a expressão usada pelas companhias de seguros, relativamente aos bens recuperados de roubos e extravios, depois de indenizados. O dinheiro retornado é remetido ao Brasil em forma de doações que começam a modificar a vida da população carente. Esperamos receber alguns bilhões de reais, cuja aplicação reduzirá o nível da desigualdade social no país. É um trabalho ingente. Estamos dispostos a pagar o preço, se necessário.
Trata-se, pois, de um movimento político e extremamente justiceiro. O que fazer, se as leis beneficiam os corruptos e a Justiça não age seriamente? Respondo: “castigar, com rigor, fazendo justiça com as próprias mãos”. Foi assim no Nordeste brasileiro, com o Capitão Virgulino – O Lampião; assim será conosco. Conhecemos a história desse justiceiro. Foi Lampião quem nos inspirou. A sanha do Rei do Cangaço nos motiva a fazer justiça, infelizmente com as próprias mãos. Nossa inspiração, portanto, veio do Nordeste brasileiro, região vilipendiada pelos políticos e injustiçada até pela natureza que parece desconhecer suas necessidades.

- Estamos orgulhosos do nome da nossa entidade: Justiceiros Implacáveis. Ela reúne pessoas de todas as classes sociais. Em nossos quadros contamos com gente disposta a fazer justiça. Implacavelmente. Não cedemos aos apelos dos justiçados. Nossos corações são duros como pedra. É a regra – finalizou.

O agente ia sentar-se, quando o chefe pediu-lhe para falar sobre o Caso Anta.

O palestrante estava com a garganta seca. Falara por tantos minutos que sentia uma ardência causada pela irritação das cordas vocais. Mais uma vez pegou o copo em cima da mesa e bebeu todo o conteúdo do recipiente. Depois de molhar a garganta, falou:

- O Caso Anta foi simples. O sujeito era um grande covarde. Naquela noite, quando o justiceiro entrou em seu escritório, encontrou-o sozinho, revisando uns papéis. Ele não sabia, mas seu algoz era implacável. Aplicou-lhe “elevada dose de convencimento”, sem deixar marcas comprometedoras ou identificáveis. Era um especialista que sabia aplicar o castigo. Doutor Anta não esboçou nenhum gesto de defesa. Apavorou-se ao ouvir que “sua hora” chegara. Iria morrer, mesmo tendo devolvido o dinheiro roubado do povo, principalmente dos pobres. Não haveria perdão. O lema da nossa organização é “jamais esquecer o castigo”. Ao sentir a iminência do fim de seus dias corruptos, não resistiu ao pavor e morreu sufocado por dor intensa. Levou a mão ao peito enquanto exalava o último suspiro. Um infarto o matou. Nosso homem apenas completou a tarefa: com um punhal pontiagudo, gravou em seu peito o símbolo dos Justiceiros. Depois, cortou-lhe a orelha direita.

- O primeiro caso está encerrado – concluiu o orador.

O agente ainda relembrou um detalhe:

– Logo após a execução do Anta, o chefe exibiu neste recinto a orelha decepada do morto. A prova da missão cumprida chegou transportada em pequena caixa retangular; depois de abri-la e mostrá-la aos colegas, lançou-a ao Pit Bull negro, deitado ao lado da mesa. O animal, de um pulo, alcançou o “petisco” ainda no ar. Aquele gesto será repetido por mais vezes – finalizou o agente.

– Muito obrigado 259.

– Estarei sempre disponível – respondeu o agente. Com um aceno de cabeça cumprimentou os ouvintes, companheiros na ingente missão de punir os corruptos.

– Novas tarefas estão em andamento. Temos muito “trabalho” por todo o país. Permaneçamos fiéis aos nossos propósitos e juramentos – disse o chefe, encerrando a reunião.

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O ultimato - Capítulo VIII - O sequestro

Leia, a seguir, o capítulo VIII de O ultimato. Obrigado. Lamércio Maciel Braga.

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O sinal de trânsito estava fechado. Apenas um veículo aguardava a mudança do vermelho para o verde, ansioso por prosseguir a viagem.

O carro parado era um Astra prateado, modelo recente; seu motorista, um homem de meia idade.

Estava sozinho.

Aos domingos, poucos automóveis circulavam pelas ruas da cidade àquela hora.

As pessoas gostam de descansar dos cinco ou seis dias trabalhados na semana anterior e se recolhem ao aconchego do lar para repousar e atualizar o sono defasado.

É uma tradição.

Há, todavia, irrecuperáveis torcedores de futebol que enchem os estádios para aplaudirem desesperadamente seus clubes, alguns, sem nenhum merecimento. O esforço para assistirem aos jogos faz o espectador abster-se de algum conforto para pagar os caros ingressos que fazem a alegria dos cartolas. Grande número desses parasitas faz fortuna explorando a ingenuidade dos amantes do futebol.

Muitos clubes não valem o entusiasmo da torcida. Mesmo das desorganizadas e assassinas.

O Flamengo…

As ruas das cidades, nos dias de jogos, costumam ficar vazias de automóveis.

E de gente.

O Astra aguardava o sinal abrir. Roncava a cada pisada do motorista no acelerador. O gesto revelava a impaciência do condutor com a demora do semáforo em liberar a via para continuar adiante.

Em dado momento, dois homens surgiram em cada lado das portas dianteiras. Exibiam ameaçadoras armas de grosso calibre.

A ordem foi imperiosa:

– Para trás, rápido! – ordenou o mais forte, enquanto baixava o encosto do banco do motorista e fazia seu ocupante atendê-lo sem questionar ou esboçar reação.

O outro indivíduo acomodou-se no banco traseiro, depois de ter a porta aberta pelo companheiro, que acionou o dispositivo de destravamento.

Manietaram o refém e puseram-lhe um capuz na cabeça. Sem nenhuma palavra, seguiram estrada afora. A vítima estava empalidecida pelo medo.

O Astra virou à direita. Logo depois do sinal, um Gol azul-claro aguardava o instante de acompanhá-lo. Quando passou, foi seguido à distância.

Os sequestradores eram bastante jovens. Mediam aproximadamente um metro e oitenta cada um, vestiam calças jeans e blusas de malha preta. Um deles trazia o cabelo preso por um laço, em forma de “rabo de cavalo”.

A cabeleira do outro chegava aos ombros. Ambos exibiam as barbas crescidas e usavam óculos escuros. Apenas um deles imprimia ordens ao sequestrado. O mais velho mancava do pé direito.

O sequestro ocorreu sem testemunhas oculares. O veículo trafegava normalmente com os três homens a bordo; dois no banco traseiro.

Um deles era a vítima.

Nenhum dizia palavra.

O sequestrado não podia falar por que uma fita adesiva ligava uma orelha à outra e tapava-lhe a boca. Ninguém respondia aos seus murmúrios, interrompidos por “aconselhamento” de um dos sequestradores.

O Gol azul-claro seguia-os com atenção.

O homem dominado tinha baixa estatura, corpo obeso e cabelos grisalhos, bastante volumosos. Vestia-se esportivamente e calçava tênis de marca. Usava óculos de grau de lentes claras.

Ele nada via, porém.

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quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O ultimato - Capítulo VII - Confraria eclética

Leia, a seguir, o sétimo capítulo de O ultimato. Obrigado, Lamércio Maciel Braga

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Josafá atendeu ao telefone que tocava insistentemente. Do outro lado da linha, uma voz afônica, motivada por algum traumatismo nas cordas vocais, foi ouvida com certa dificuldade:

– 243 falando. Pode ouvir?

– Sim chefe, continue – respondeu após identificar a voz rouca e quase inaudível do interlocutor, agravada pelo ruído do aparelho defeituoso. – 253 na escuta. Pode falar!

– Hoje, à noite, estaremos reunidos no local de costume. Às vinte horas. Entendido? Avise os demais membros do grupo.

– Sim chefe!

Cinco minutos depois, Josafá ligava para alguns nomes de uma lista gravada na própria memória. Atenderam-no prontamente; todos confirmaram suas presenças ao encontro. Ninguém se negou a divulgar a convocação.

Josafá tinha grande respeito pelo líder, um senhor de sessenta anos de idade, cabelos grisalhos e extremamente educado; falava com incrível correção gramatical, tinha o olhar penetrante e a voz cheia, audível, diferente da ouvida pelo telefone naquela manhã. Afinal, estava doente. “Que Deus o cure o mais breve possível” – rogou Josafá, em pensamento.

O chefe dirigia muito bem a organização. Satisfazia plenamente aos colegas por ser objetivo nas explanações que fazia. Era um homem admirável, prestativo, religioso.

Um judeu convicto.

Regia-se pelo Velho Testamento.

“Dente por dente, olho por olho”, insistia o mestre em suas preleções.

Nascido em Governador Valadares, estado de Minas Gerais, Josafá estudou em escola pública, mal servida de professores; mesmo assim, concluiu o segundo grau; pretendia ingressar na universidade.

A exemplo dos conterrâneos, desejou morar nos Estados Unidos, país que diziam ser o “paraíso” do trabalhador, especializado ou não. Nunca conseguiu realizar o sonho; tentou duas vezes, porém foi enganado por agentes de viagens inescrupulosos. Temia ser preso ao atravessar a fronteira com o México; por isso, renegou a idéia.

Depois de desistir de morar na América, Josafá transferiu-se para Brasília. Na capital federal, trabalhava de dia e fazia cursinho pré-vestibular à noite. Pretendia fazer Direito. Antes de terminar os estudos, foi aprovado em concurso público para órgão da Justiça Federal.

O esforço do jovem foi premiado.

Como futuro advogado, Josafá pretendia defender causas sociais, advogar demandas justas onde pudesse aplicar os conhecimentos acadêmicos e seu inabalável sentimento de justiça.

Às vezes, dizia aos colegas de faculdade: “jamais defenderei o MST; a causa pode parecer justa, mas o movimento é político e guerrilheiro; não concordo com a manipulação das massas; o homem analfabeto ouve a voz sem saber de onde vem”.

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O ultimato - Capítulo VI - Indícios suspeitos

Leia, a seguir, o sexto capítulo de O ultimato. Obrigado, Lamércio Maciel Braga

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A investigação policial apurou que doutor Antunes vendera todo o seu patrimônio dias antes de morrer.

As autoridades, todavia, não conseguiam apurar a razão.

Dona Mercedes, a viúva, também ignorava as transações. Nada explicara; manifestara-se totalmente desinformada. Dissera ter assinado as escrituras de vendas dos imóveis sem questionar os motivos. Segundo ela, grande parte dos bens do falecido consistia em valores mobiliários: títulos, ações e diversos papéis do mercado de capitais.

Ele acreditava na Bolsa de Valores!

Nenhum real apareceu em contas bancárias do extinto. Nem qualquer resíduo de moeda estrangeira, onde quer que fosse.

Como explicar?

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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O ultimato - Capítulo V - As especulações

Leia, a seguir, o quinto capítulo de O ultimato. Obrigado, Lamércio Maciel Braga

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A imprensa noticiou o crime com estardalhaço. Os jornais diários mostraram fotografias coloridas do cadáver com aquele quadrilátero provocador contendo as letras JI gravadas no peito. Insinuaram vingança entre famílias rivais ou acerto de contas, comum no âmbito empresarial e político.

“Possivelmente, trata-se de uma vingança; a orelha decepada seria a prova da execução encomendada”, noticiou certo matutino.

“Não fora o status da vítima e sua posição como político influente, dir-se-ia ser coisa do narcotráfico”, escreveu importante revista semanal.

Uma emissora de televisão filmou as dependências do luxuoso escritório onde fora encontrado o corpo sem vida do doutor Antunes.

Imaginária reconstituição dos fatos foi levada a efeito por atores famosos. A grande audiência do programa, intitulado “Tragédia Reconstituída”, pretendia receber denúncias ou pistas que levassem ao possível assassino.

O apresentador do programa esquecera-se do laudo pericial. O documento do legista atestara o infarto como causa mortis.

Para o apresentador da televisão houvera assassinato.

Todos desejavam esclarecer o porquê das iniciais JI gravadas no peito do cadáver.

Periódicos de menor importância insinuavam que os criminosos seriam nordestinos. Em longas digressões, mostravam as semelhanças da morte com as praticadas por pistoleiros a mando de coronéis da política ou por pessoas que contratavam o assassinato de desafetos para lavar a honra ultrajada da família.

Diziam os tablóides sensacionalistas: “na região Nordeste, o pai de uma filha deflorada antes do casamento ou um marido traído costuma lavar a honra afrontada com o sangue do autor do delito”.

Tudo especulação.

As autoridades nada informavam; alegavam segredo de justiça para não atrapalhar as investigações.

O delegado da polícia civil, responsável pelo caso, doutor Bat Masterson, era um homem impulsivo, que às vezes agia de maneira irrefletida.

Dizia-se uma pessoa corajosa, valente, parecida com seu xará, de quem herdara o nome, posto pelo pai por ser fã da lendária figura do Oeste americano.

Sem controlar a língua, quebrou o silêncio e disse à imprensa que a polícia estava prestes a prender o assassino.

– Assassino doutor? O homem não morreu de infarto do miocárdio? – indagou um repórter de televisão.

– Sim, assassino. O doutor Anta foi assassinado. O fato de o laudo do legista mencionar infarto como causa mortis não afasta essa possibilidade. Desconfio de que a vítima sofreu agressão psicológica intensa. Seu rosto expressava profundo terror. Talvez tenha sido forçado a ingerir alguma substância venenosa, letal.

– Doutor, o perito constatou como causa da morte, o infarto. Portanto…

– Portanto, não acredito no legista.

– Mas ele é autoridade no assunto. O senhor desconfia de que o laudo foi forjado?

– A investigação está em andamento. Logo, logo, chegaremos à verdade – concluiu o policial, afastando o microfone da boca.

O aparelho já lhe ferira o lábio superior.

O doutor Bat Masterson era mesmo um fanfarrão. Homem grande, corpulento, vivia sempre com a pistola automática ao alcance das mãos. Nascera no Sul do país, de uma família de produtores de fumo. Defendia a plantação do tabaco, isentando-o de seus malefícios. Fumava desbragadamente para confirmar as próprias convicções.

E tossia como um desesperado.

Principalmente pela manhã.

As informações do delegado “faziam a festa” dos jornalistas. A empáfia do policial não condizia com o resultado das investigações.

No dia seguinte, os jornais tiveram muito a relatar.

E a especular.

Pouco, porém, a explicar.

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O ultimato - Capítulo IV - A suspeita

Leia, a seguir, o capítulo quarto de O ultimato. Obrigado, Lamércio Maciel Braga

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Dois meses depois da morte do doutor Antunes, a polícia ainda não tinha certeza se o extinto fora mesmo vitimado por infarto, conforme anunciado no laudo cadavérico.

No local da morte inexistiam sinais reveladores de autoria criminosa. As digitais encontradas coincidiam com as da própria vítima e dos funcionários da empresa.

A figura gravada no peito do morto fora feita por alguém com o nítido propósito de chamar atenção.

Esse era o mistério.

Nenhuma pista.

Seria aquele um caso de vingança?

O que significavam as letras JI, impressas com tanto requinte?

Seriam as iniciais do nome de um desafeto do assassino ou de alguém da família de vítima executada a mando do finado ou por ele próprio, quando vivo, obviamente?

Eram os questionamentos.

A morosidade da polícia em desvendar o caso incomodava parentes e irritava correligionários do de cujus. O atual presidente do seu ex-partido, senador de inequívoca influência, solicitou ao Ministério da Justiça a participação da polícia federal para ajudar nas investigações, no que foi atendido. Os policiais federais e estaduais passaram a trabalhar conjuntamente.

– Agora vai! – dissera otimista observador.

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sábado, 8 de agosto de 2009

O ultimato - Capítulo III - A autópsia

Leia, a seguir, o terceiro capítulo de O ultimato. Obrigado, Lamércio Maciel Braga.

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A autópsia no cadáver do inditoso Antunes foi realizada com o rigor e o conhecimento de experiente legista.

O médico fez dois grandes cortes em “vê”, na altura das clavículas direita e esquerda, e um terceiro que descia paralelamente até a região pubiana.

As fissuras resultaram em forma de “ípsilon”.

O osso esterno foi cerrado por lâmina circular elétrica e depois separado em duas partes. O eficiente legista afastou as costelas de ambos os lados, a fim de facilitar o trabalho, efetuado cautelosa e meticulosamente.

Examinou os pulmões, revirou-os para verificar se teriam sido contaminados por gases venenosos ou se estariam encharcados de água, como em casos de afogamento.

Nada disso foi constatado.

Responsáveis pela respiração, os pulmões deixaram de transformar o sangue venoso em arterial sem nenhuma interferência externa.

Depois foi a vez do coração. Este, sim, estava danificado. As artérias coronarianas necrosaram ao sofrerem constrições que as impediram da irrigação do sangue, indispensável ao bom funcionamento dessa parte vital do corpo.

O médico-legista, após encerrar os trabalhos, diagnosticou a causa mortis como “infarto fulminante do miocárdio”.

Foi o que constou do atestado de óbito.

A marca gravada no peito e a retirada da orelha direita foram efetuadas post mortis, afirmava o laudo.

A sala de necropsia era um ambiente lúgubre, frio e sujo. Dispunha de poucos móveis: uma grande geladeira com dezenas de gavetas enfileiradas, três camas e duas mesinhas de aço inoxidável para acomodar os instrumentos cirúrgicos. Um fichário de madeira bastante usado servia para arquivar os prontuários dos cadáveres durante os processos de identificação e diagnóstico.

O chefe da investigação criminal entrou na sala de autópsia, sem se anunciar. Empurrou a larga porta de madeira, abrindo-a ruidosamente.

O ranger das dobradiças não assustou ninguém.

Ali não havia espaço para o medo.

A hora da visita foi inoportuna. O legista, sentado em uma cadeira de metal, pintada de branco, já um tanto descascada, fazia pequena refeição.

O barulho das serras circulares que abriam os corpos comprometia a audição.

– E aí doutor? Terminou o trabalho? De que morreu o homem? – perguntou o delegado que acabara de chegar.

A barulheira impediu o médico de ouvir a pergunta da autoridade policial.

– De que morreu o homem? – repetiu o delegado, referindo-se ao doutor Antunes Anta da Silva.

Sem responder, o legista levantou-se e foi ao armário. Prendeu o sanduíche entre os dentes, abriu uma gaveta, retirou um dossiê e dele uma folha de papel, com o timbre da instituição.

Era o laudo pericial.

O documento dizia tudo.

Nada havia a acrescentar.

O médico retornou à solitária refeição.

O policial dobrou o papel e o colocou no bolso interno do paletó. Bastante nauseado, abandonou o recinto sem se despedir do legista. Nem mesmo agradeceu-lhe o atendimento.

Depois da refeição, doutor Hamilton daria continuidade ao trabalho, muito intenso naquele dia. Há vinte anos prestava serviço ao Instituto Médico Legal. Em determinadas ocasiões, às segundas-feiras, principalmente, abria de três a quatro cadáveres.

Somente ele.

Os demais colegas, em número de quatro, davam conta de mais doze. Eram tantos os cadáveres para autopsiar, que os médicos sentiam-se cansados, mesmo ajudados por auxiliares, em quantidade insuficiente.

O índice de criminalidade era assustador.

E crescente.

Sem soluções à vista.

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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O seqüestro (conto)

A loja do Mac Donald’s estava superlotada de jovens, a maioria adolescentes, acompanhados de suas namoradinhas. Sentados às respectivas mesas, distantes cinco metros um do outro, Marinalva e Antero ensaiavam virtual namoro.

A cada mordida no big mac, degustado saborosamente, seguia-se um olhar acompanhado de sorriso ou de aceno de cabeça, como se perguntassem e ao mesmo tempo respondessem, por sinais, às formulações feitas mutuamente.

Experimentavam as primeiras insinuações amorosas, envolvidos em clima de intensa felicidade. A delícia que sentiam era compartilhada tanto pelo paladar quanto pelo coração. O big mac e o flerte faziam bem a ambos.

Terminada a pequena refeição, Antero se dirigiu à linda garota, ainda quase menina, e perguntou se poderia sentar-se ao lado dela, à mesa. A resposta foi imediata e positiva. Minutos depois, bem animados, conversavam amenidades. Falaram de música, de cinema, revelaram as preferências de cada um. Não faltaram menções a Sandy e Júnior nem ao Senhor dos Anéis.

Marinalva falou da escola, citou alguns amigos e em nenhum momento pareceu entediada com a conversa. Antero parecia embevecido com os encantos da moça. O olhar da jovem era penetrante, originado de dois globos esverdeados sob pálpebras ornamentadas por cílios negros e vistosos; a boca, bem delineada, emoldurada por lábios carnudos e sensuais emitia um sorriso encantador; os cabelos pretos, volumosos e macios desciam até os ombros em linha reta ao queixo, onde graciosa covinha se expandia e se contraía cada vez que forçava os lábios, rindo das manifestações ou de gestos de Antero.

O jovem ficou maravilhado com o belo corpo de Marinalva. Dois lindos seios redondos e empinados pareciam prestes a romper o tecido da blusa azul-clara, vestida naquele momento; também davam a impressão de estarem próximos a saltar do decote bastante generoso. Igualmente lindos e sensuais eram os quadris, traçados por graciosas curvas que terminavam em proporções perfeitas, até chegarem aos pés, calçados por sandálias de saltos altos, acentuando-lhes a beleza.

O encontro daquele dia resultou em grande amizade, logo transformada em amor puro e verdadeiro. Precisariam apenas de alguns anos para casar. Esperariam que a idade consolidada garantisse uma união duradoura e feliz.

Os enamorados jovens cuidaram primeiro da estabilidade financeira do casal; estudaram e concluíram curso superior; ele formou-se em engenharia, enquanto ela bacharelou-se em direito, pretendendo ingressar na magistratura.

Cinco anos após o memorável encontro naquela loja do Mac Donald’s, Antero e Marinalva marcaram o casamento. Os preparativos empolgaram a todos, desde os nubentes aos demais familiares, felizes com a união que seria celebrada em tradicional igreja da cidade, um templo em estilo gótico, com mais de duzentos anos.

No dia do festejado enlace matrimonial, a noiva internou-se em badaladíssima clínica de beleza; passaria o dia à espera da hora inesquecível. Ali, seria tratada como princesa, cuidada por cabeleireiros, manicuras, pedicuras, esteticistas do mais alto padrão, inclusive por psicólogas aptas a orientá-la sobre delicados temas conjugais. Terminariam por fornecer conselhos a respeito da noite nupcial.

Uma equipe de fotógrafos e de cinegrafistas foi contratada para acompanhar a nubente até o momento de ser conduzida ao altar.

As festividades ficaram a cargo de profissionais competentes, contratados pelo pai da noiva, a altíssimo preço, justificado pela felicidade da filha. Seria uma festa sem precedentes, linda e maravilhosa; o cardápio foi preparado pelo melhor buffet da cidade, que também serviria vinhos finos e outras bebidas de igual qualidade. Marinalva era a última filha a casar e a família compartilhava a sua felicidade.

Após almoço frugal, e depois de oportuno repouso, o noivo foi ao barbeiro. Dispensou a companhia de um velho amigo, pois desejava ficar só para imaginar sua atuação logo mais a noite.

Dirigia o carro sozinho. No percurso, foi abordado em um sinal de trânsito por dois bandidos armados de pistola automática. Os assaltantes exigiram que Antero os levasse a um caixa-rápido para sacar dinheiro de sua conta-corrente.

O rapaz tentou explicar aos meliantes que aquele era o dia do seu casamento, marcado para as vinte horas. Esperou a compreensão dos sequestradores, sem resultado. Tanto mais explicava, quanto mais dinheiro sacava em diversos caixas eletrônicos, pois dispunha do bastante para a viagem de núpcias.

Os bandidos riam gostosamente.

Exigiram de Antero uma ligação em seu celular, pois pretendiam falar com a noiva que curtia o conforto da clínica e a felicidade do momento.

– Marinalva? – falou o noivo ao telefone. – Fui sequestrado quando me dirigia ao barbeiro. Os bandidos me fizeram sacar dinheiro nos caixas automáticos. Querem falar com você.

Um dos assaltantes, depois de alguns gracejos e ameaças a Antero falou ao telefone com a noiva. A cor da tez de Marinalva mudou naquele momento de estresse, embora estivesse sob a ação de refinados produtos de beleza.

Disse o bandido:

– Não se preocupe moça, não iremos matar o seu noivo. Vamos apenas cortar o “saco” dele. Castrar esse miserável!

Marinalva desmaiou ao ouvir o que dissera o facínora. Temia pela vida do futuro marido. Ficara horrorizada com a idéia de ver Antero emasculado. Não podia imaginá-lo naquele estado. O que seria dela, se tal acontecesse?

Perdeu novamente os sentidos, quando a imagem do rapaz, “despossuído”, passou-lhe pela cabeça atormentada.

Antero argumentava com os sequestradores. Pedia para não fazerem aquilo com ele, que o soltassem, pois o tempo avançava e a hora do casamento estava próxima.

Nada.

Os rapazes riam, como se tudo não passasse de simples brincadeira. Ameaçavam cumprir a promessa feita à noiva, por telefone. Um deles sacou de um canivete, abriu a lâmina afiada, cortou um fio de cabelo da cabeça do rapaz e estendeu a mão para apalpar-lhe os órgãos genitais, naquele momento protegidos pelo grosso tecido da calça jeans.

Finalmente, o bandido agiu:

– É agora!

– Nãaao! – gritou Antero, desesperadamente.

Seu grito ecoou pelas cercanias do prédio, onde se encontrava detido.

Do estacionamento de certa agência bancária, um policial patrulhava o local. Ouvira gritos desesperados; as súplicas partiam de uma voz angustiada. A vítima precisaria ser salva imediatamente.

O guarda correu em socorro do inditoso jovem, na esperança de livrá-lo do pior. Talvez evitar-lhe a morte. Não imaginava que seu gesto heróico pudesse evitar a perda de algo tão precioso a Antero e a Marinalva.

Os bandidos fugiram. Deixaram o rapaz aos cuidados do vigilante que, em seguida, acionou a polícia pelo telefone celular.

Faltavam duas horas para o casamento.

A cerimônia foi realizada com atraso. Ocorreu na presença de familiares e amigos. No salão de festas, os recém casados receberam cumprimentos e posaram para fotografias.

Abraçados, os corpos bem unidos, o casal compartilhou beijos e abraços.

Nessa ocasião, Marinalva percebeu que os sequestradores não cumpriram a promessa.

O ultimato - Capítulo II - A investigação

Leia, a seguir, o segundo capítulo de O ultimato. Obrigado, Lamércio Maciel Braga.

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A polícia especializada atendeu ao chamado da família. Seis homens uniformizados e três agentes da polícia civil chegaram em dois carros pretos, listrados de amarelo, com tarjas verdes, todos com os logotipos das instituições impressos nas portas.

Interditaram e examinaram o local minuciosamente.

Durante as diligências de praxe, tomaram depoimentos, inquiriram empregados, elaboraram registros, colheram impressões digitais, revistaram móveis… Fotografaram o corpo por diversos ângulos, principalmente a parte em que fora aposta a marca macabra e chamativa – JI.

Os policiais espalharam-se por todos os cômodos do escritório, cada qual exercendo uma especialidade. Um delegado da polícia civil coordenava o inquérito. O fotógrafo não dava descanso à máquina. Captava todos os lances e atendia as solicitações dos companheiros pontualmente.

– Você não fotografou o lado direito da cabeça. O cadáver está mutilado; falta a orelha! – falou, zangado, o chefe da investigação.

O fotógrafo era gordo, careca e atendia pelo nome de Otávio. Há dez anos trabalhava na polícia, depois de ter passado pelo departamento de imprensa de uma empresa estatal.

Otávio tinha pequeno defeito físico: uma deficiência visual não identificada quando de sua contratação para os quadros da polícia. Tinha só uma vista; a outra cegara, atingida por uma pedra, quando criança. As restrições visuais jamais o impediram de trabalhar como fotógrafo.

Insatisfeito por ter sido repreendido na presença dos colegas, e visivelmente aborrecido com o chefe da investigação, Otávio disparou a máquina Polaroid por diversas vezes seguidas, até esgotar o filme do equipamento.

Ele não trazia outro para reposição.

Possíveis evidências ficaram prejudicadas.

O detetive Cid Valente, um dos investigadores do caso, mais conhecido por El Cid, numa referência debochada ao grande guerreiro espanhol, era um rapaz talentoso. Invariavelmente trajava calça jeans e paletó preto bastante surrado.

Esforçava-se para honrar o nome da família. O pai fora investigador de polícia, naquele tempo chamado depreciativamente de “araque”, e até fizera jus à denominação: formara-se detetive por correspondência.

Já o avô, apadrinhado por políticos da região, tornara-se delegado. Durante mais de vinte anos chefiou a polícia de Carrapateira, onde ficou famoso por castrar os estupradores que prendia.

O calor intenso fez El Cid afrouxar o nó da gravata, um acessório de cor vermelha, bastante ensebado, por ele ter o hábito de limpar a boca toda vez que cuspia, o que não era raro.

Naquela oportunidade, El Cid expeliu a secreção salivar para um lado e livrou-se, também, do chiclete que mascava desde o início da manhã. Coçou a mandíbula do lado esquerdo, fez uma leve careta e perguntou ao chefe:

– E agora?

– Removam o corpo para o Instituto Médico Legal. Depois continuaremos as diligências. Por essa e outras razões, a população não “faz fé” na polícia brasileira – desabafou o chefe, sem esconder a irritação.

A exasperação do responsável pelas diligências era agravada pelo mau humor que sempre lhe contagiava. Contrariado, saiu de repente, com o paletó às costas, preso ao polegar da mão direita. Atirou fora o toco de cigarro e imediatamente acendeu outro num gesto mecânico.

Depois das providências de praxe, os policiais dirigiram-se aos veículos estacionados nas proximidades. Os carros exibiam os logotipos das instituições já um tanto desbotados. Os pneus demonstravam muitos quilômetros rodados, anunciando a hora de serem substituídos.

O motorista da viatura que aguardava o delegado era um sujeito obeso, de aparência senil. Chama-se Emílio. Enquanto esperava o chefe, devorava vorazmente o sanduíche de mortadela, sentado ao volante, com os pés repousando no lado direito do painel de instrumentos. A comida penetrava a goela, facilitada pelo líquido morno de uma Coca-Cola.

O glutão teve a refeição interrompida pelos homens da lei, ao entrarem no carro batendo as portas com força excessiva. Assustado, deixou cair parte do precioso lanche.

A bebida escura e pegajosa manchou o uniforme do policial, uma peça bastante surrada, carente de cuidados higiênicos.

A viatura pilotada por Emílio parou a poucos metros de distância.

Acabara a gasolina.

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terça-feira, 4 de agosto de 2009

Informações sobre capítulos de O ultimato (romance)

Caro leitor,

Conforme prometido, inicio, a partir desta data, a publicação, neste blog, de capítulos de romance de minha autoria.

O primeiro título a ser divulgado será O ultimato. Diariamente, postarei um capítulo, de sorte que, em vinte e um dias, você o terá lido por completo.

As crônicas e os contos disponibilizados desde maio de 2009 continuarão expostos para sua leitura crítica ou por mero passatempo; depende de sua disposição para comentários que servirão de estímulo a este modesto escrevinhador.

Eis, portanto, o primeiro capítulo de O ultimato. Modesto, mas de agradável leitura, conforme opinião de benevolentes leitores.

Lamércio Maciel Braga

Apresentação de O Ultimato (romance)

O Ultimato é um pequeno romance de ficção. Foi escrito sem o propósito de incitar a violência,debochar de autoridades ou macular a dignidade de pessoas honradas.

A inspiração para escrevê-lo veio de fatos amplamente noticiados pela imprensa ao longo dos anos, tendo a corrupção no Brasil como assunto dominante.

Como cidadão, acredito na Justiça, única instituição autorizada a aplicar penalidades ao infrator da lei, da moral e dos bons costumes.

Sou cristão, contrário a qualquer tipo de violência, a despeito de tê-la utilizado como tema ao escrever este modesto livreto.

Não defendo o que escrevi.

Desejo, aqui, dissociar as ideias do escritor e do cidadão. O escritor aproveitou-se de fatos recorrentes para montar a história, sem, contudo, desejar vê-la cumprida, sob qualquer pretexto; o cidadão almeja a paz, a prosperidade do país e a moralidade do homem público em suas relações com o Estado.

Este pequeno romance, como disse, é obra ficcional. Quaisquer referências a acontecimentos, organizações e lugares tiveram o objetivo de dar à ficção um sentido de realidade. Toda semelhança, pois, com instituições ou pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.

Lamércio Maciel Braga


O ultimato - Capítulo I - O corpo marcado

Leia, a seguir, o primeiro capítulo de O ultimato. Obrigado. Lamércio Maciel Braga

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No início do expediente, a secretária entrou na sala do espaçoso escritório e encontrou o patrão deitado no assoalho.

Estava morto.

O cadáver foi localizado de barriga para cima, as pernas estiradas e os braços estendidos ao longo do corpo. Os olhos sem vida pareciam ter visto algo assustador. A boca aberta forçava o queixo para baixo. O aspecto macabro da vítima confirmava o horror do último instante vivido na noite anterior.

O escritório onde se deu o óbito ficava no décimo andar de belo edifício recém-construído, uma edificação luxuosamente erguida para sediar a administração de grandes corporações nacionais e estrangeiras.

Renomados advogados, médicos de elevado conceito e arquitetos famosos disputavam o privilégio de ali se estabelecerem.

O sofisticado endereço era uma referência para profissionais das mais importantes atividades empresariais. Uma espécie de Meca de destacados empreendimentos.

Dona Marly, a secretária, mal cruzara a porta do elegante gabinete, quando se deparou com a lúgubre cena. O impacto a deixou em estado de choque.

O local parecia sinistro.

Antes do ocorrido, estava bem decorado e elegantemente mobiliado; naquele instante, porém, inspirava medo. A morte chegara com toda frieza. Transformara o ambiente alegre em recinto triste e pavoroso.

Refeita do susto do primeiro momento, a secretária deixou a sala às pressas. Apavorada, gritava desesperadamente por socorro. O pânico a impediu de notar a falta da orelha direita do cadáver, de onde o sangue escorrera para acumular-se junto ao pescoço.

O medo também evitou que dona Marly visse a horripilante marca estampada no peito do morto, produzida por um objeto cortante e afiado.

Na figura impressa no tórax liam-se as letras “j” e “i” grafadas em maiúsculas e emolduradas por um quadrilátero de proporções maiores. Todo o desenho media cerca de doze centímetros quadrados.

A letra jota foi elaborada unindo-se a linha vertical à horizontal, traçada da direita para a esquerda, prolongada verticalmente por uns dois centímetros. Parecia um “L” em sentido contrário, com um pequeno seguimento para cima.

Assim: “J”.

A letra “I” foi mais fácil de fazer: um único corte desferido em linha reta de cima para baixo.

Desse modo: “I”.

A estampa sinistra tinha o seguinte formato:

JI

Antunes, o morto, era advogado. Um cinqüentão alto, forte, bem apessoado, com alguns fios de cabelos brancos a ornar-lhe o rosto redondo. A face um pouco enrugada aparentava sinais da velhice que se aproximava lenta e continuadamente.

Era chamado de doutor Antunes. A esposa, dona Mercedes, jovem senhora recém saída dos quarenta anos, ainda exibia traços de beleza na juventude. Nascera de família pobre; estudara pouco; sequer concluiu o segundo grau. Quando solteira, trabalhou como camareira de um hotel na capital do estado. Ali, conhecera o doutor Antunes, por ocasião das viagens que fazia com interesse político.

Casaram-se dez meses depois, para afastar o falatório das pessoas. A futura sogra do doutor Antunes irritava-se com os comentários de que a filha era amante do advogado.

As fofocas aceleraram o casório, realizado na presença de autoridades civis e políticas.

Dona Mercedes preferia chamar o marido pelo apelido de “Anta”. Não desejava, dessa forma, depreciá-lo; tratava-o assim por sentir nele a firmeza consubstanciada no significado de outro sinônimo da expressão, ou seja, a pilastra angular de um edifício. Para ela, o Anta foi o arrimo que jamais faltou. Seu amor maior? Não sabia responder. Sua grande paixão fora um antigo namorado, com quem vez ou outra traia o marido.

O apetite sexual de Dona Mercedes ofuscou-lhe a razão. Por que magoara o esposo? Se ele não a satisfizera plenamente, apagando o fogo de seu corpo esbelto e voluptuoso, pelo menos tentara.

E como tentara!

– Aquela infeliz disfunção! – irritava-se, ao lembrar frustradas noites de amor com o falecido marido.

O apelido do doutor Antunes resultou incorporado ao nome. Judicialmente, solicitou a alteração do registro civil e a pequena palavra deixou de ser uma alcunha. O epônimo juntou-se às demais denominações e ele passou a assinar-se Antunes Anta da Silva.

Para dona Mercedes, a mudança fez pouca diferença. Sempre considerou o antigo epíteto de bom significado: a pedra angular, de esquina. A personalidade do marido era firme como uma rocha.

Assim ela o tivera em conta.

Todavia, para os estranhos, principalmente inimigos políticos, o acréscimo ao nome caíra-lhe como uma luva. Refletia o indivíduo de inteligência limitada, burro, tolo, disparatado.

Os familiares lamentaram o passamento do ente querido. Os amigos lastimaram a morte prematura do doutor Antunes, aos cinqüenta e três anos de idade. Os desafetos falavam do assunto com um leve sorriso nos lábios.

Os adversários políticos? Como se sentiram aliviados! Estavam livres da concorrência; o falecido tinha sido um candidato de peso à sucessão municipal. A força da máquina administrativa atual já se manifestava solidária à próxima campanha.

Os recursos financeiros do partido, provenientes de grandes contribuições de empresas privadas e do recolhimento obrigatório dos filiados, tornavam o candidato imbatível.

As empreiteiras contribuíam generosamente para o fundo partidário, “sem segundas intenções”, orgulhosas de fazerem parte do processo democrático. Uma iniciativa que mais tarde revelou-se indecente, alargando os caminhos da corrupção.

Como tesoureiro da agremiação partidária, doutor Antunes usou o poder do dinheiro para eleger vereadores e deputados. Os correligionários jamais lhe teriam negado apoio político.

E quantos empregos públicos não conseguira, interferindo nos altos escalões do governo? Cargos e funções concedidos em período eleitoral geram grandes dividendos políticos – o voto, arma por ele usada com habilidade.

– O homem era forte demais! Ainda bem que morreu – confidenciou certo deputado a um dos seus pares, ao ouvir de correligionários do extinto citações sobre sua influência política.

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