sexta-feira, 31 de julho de 2009

Influência nula (conto)

O pai, funcionário do Estado. Chamava-se Adão. A mãe, Eneida, era professora primária. A renda da família permitia ao casal e aos três filhos viverem razoavelmente. Para morar, escolheram uma cidade do interior onde o custo de vida era considerado baixo.

Os filhos foram registrados com nomes de pessoas importantes do mundo científico, cultural e artístico. Adão e Eneida acreditavam que influenciariam a personalidade dos pimpolhos.

O nome de Osvaldo Cruz coube ao mais velho; o de Jorge Amado, ao do meio, e o de Roberto Carlos, ao caçula.

Os pais não se preocuparam em agregar ao nome principal o sobrenome dos dois primeiros ilustres homenageados: Cruz e Amado.

– Conhecemos tantos Kenedy, Jonhson, Fitipaldi… – disse Adão, em resposta às críticas feitas pelo Notário, por ocasião do registro do caçula, recém-nascido.

Antes de deixar o cartório, Eneida ainda se dirigiu ao ousado escrivão:

– O próximo será Romário.

– Romário, não! Ronaldo. A bola do Romário murchou. Ronaldo, para chamarmos de Ronaldinho, um fenômeno em matéria de casamento; aos vinte e quatro anos já casou duas vezes! – concluiu Adão, aliviado com a resposta dada ao funcionário do Registro Civil.

Deram aos filhos nomes de ilustres personalidades nacionais, pois Adão dizia-se nacionalista ferrenho, contrário ao modismo de palavras estrangeiras.

Acrescentaram aos prenomes dos filhos a expressão “Azevedo”. Azevedo designava tradicional família oriunda do município onde nasceram os pais dos meninos, cujos avós se revezavam nos cargos de prefeito e vereador.

Os pais de Adão e Eneida mantiveram o poder político por mais de duas décadas, até caírem em desgraça, rejeitados pelo voto popular.

O eleitorado jovem resolvera acabar com o coronelismo na região. Os antigos copiaram o gesto dos mais novos. Aproveitaram o baixo conceito dos políticos e iniciaram uma renovação sem precedentes.

Altos funcionários públicos, ex-prefeitos, ex-deputados e ex-senadores eram presos quase diariamente. Os “honrados” congressistas, na vigência de seus mandatos, não podiam ser detidos pela polícia. Gozavam de imunidade parlamentar. Defenestrados de seus cargos eletivos, por absoluta escassez de votos, perdiam a regalia.

Tornara-se comum ver suas ex-excelências algemadas diante das câmeras de televisão, algumas com os paletós a encobrir-lhes os punhos vermelhos e vincados pelo metal que os manietava.

Os telespectadores exultavam com aquelas imagens. Ficavam aborrecidos, porém, quando os viam em liberdade, não raro postergada indefinidamente, provocando a ira do cidadão honesto, cada dia menos esperançoso e mais decepcionado com a justiça lenta, precária e tendenciosa.

Os filhos de Adão não tinham em quem se espelhar. Os exemplos do homem público os tornariam desonestos, se decididos a imitá-los.

Negligenciaram os estudos.

Trocaram os livros pela televisão.

E pelos videogames.

Na TV, viam cenas da marginalização institucionalizada, da violência crescente, do descaso pela coisa pública, e da libertinagem dos programas patrocinados por grandes empresas.

Tudo sem punição.

“O que fazer?” – perguntavam-se os pais, cada vez mais preocupados, enquanto os filhos aderiam à música eletrônica e aos shows das bandas de Rock, quando não se deixavam viciar nas drogas.

A promiscuidade comprometia a saúde e o futuro da juventude, alienada e irresponsável.

Adão mostrava a cada filho o exemplo de seu respectivo xará:

– Osvaldo Cruz, sente-se aqui! – chamou o mais velho, antes de puxá-lo para junto de si. – Espelhe-se no exemplo de teu homônimo, o outro Osvaldo, nascido em 05 de agosto de 1872, em São Luis de Paraitinga, São Paulo. Foi um homem notável e muito estudioso. Formou-se em medicina aos vinte anos de idade. Estagiou em Paris, principalmente no Instituto Pasteur. Tornou-se um grande cientista, designado pelo governo brasileiro para combater a epidemia ocorrida em Santos e em outras cidades portuárias, a peste bubônica.

Osvaldo, o de sobrenome Azevedo, filho de Adão, ouvia o pai com certa indiferença. Quando este pronunciou a palavra bubônica, perguntou intrigado:

– O que significa bubônica?

– Nunca ouvistes falar da peste bubônica? O que te ensinam na escola, menino? – perguntou Adão, decepcionado e preocupado com o nível de ignorância do filho.

– Ah, pai, deixa pra lá!

– A peste de que falo é uma doença infecto-contagiosa, manifestada sob a forma bubônica, provocada pelo Bacillus Pestis, transmitido pela pulga do rato. Tornou-se epidêmica em todo o mundo e, no Brasil, foi combatida por teu xará, o grande Osvaldo Cruz!

Osvaldo Cruz Azevedo nada mais quis ouvir. Retirou-se e foi à televisão ver o clipe de uma banda de Rock. O pai ficou a olhá-lo à distância. O nome escolhido para o filho não influenciara a sua formação educacional e psicológica.

– Jorge Amado, sente-se aqui! – chamou o segundo rebento, apontando-lhe a cadeira vazia ao seu lado.

– Oh, pai, estou jogando videogame! Aproveito enquanto o Roberto Carlos dorme. O que é?

– Venha cá, garoto! Sabes quem foi Jorge Amado?

– Claro que sei. Joga no Barcelona. Lá, eles o chamam de…

– O que é isso, pirralho? Jorge Amado foi um grande escritor brasileiro, nascido na Bahia, autor de vários romances. Seus livros foram traduzidos em muitos idiomas, mundo afora. Nunca ouvistes falar de “Gabriela, Cravo e Canela”?

– Claro, pai. Dia desses a vi na televisão. Que mulher! Hoje, mora nos Estados Unidos. Uma gata! – concluiu Jorge Amado, o segundo filho de Adão, naquela época com doze anos de idade.

O pai ficou encabulado. E, mais ainda, decepcionado com o aprendizado do filho na escola.

– Saiba, pelo menos, que o grande Jorge Amado foi membro da Academia Brasileira de Letras…

– Aquela academia de ginástica… – arrematou o rapaz, totalmente ignorante.

Roberto Carlos, o Azevedo, acabara de levantar-se da cama. Ainda esfregava os olhos com as costas da mão esquerda. Comia um sanduíche de bacon com ovos fritos. Sequer cumprimentou o pai, ainda sentado em sua cadeira interrogativa.

– Senhor Roberto Carlos! Desejo saber se pretendes obter o êxito de teu xará, cantor de grande expressão popular e autor de uma infinidade de discos gravados. Até em espanhol! – concluiu Adão, admirado da versatilidade do renomado compositor.


A conversa com o caçula dos filhos não trouxe nenhuma surpresa ao desiludido pai. O garoto, como os outros, de nada queria saber.

O tempo passou de repente, como diz certa música popular. Os filhos de Adão e Eneida tornaram-se adultos e independentes. Os pais suportavam o peso dos anos, não muito contentes com o destino dos filhos. Osvaldo Cruz estava empregado como porteiro de um hospital; Jorge Amado tornou-se apontador do jogo do bicho e Roberto Carlos vendia discos copiados no computador.

Adão, desanimado com o progresso dos filhos e descontente com o resultado das escolhas que fizeram para enfrentar a vida, deixou de acreditar que nomes de ilustres personalidades influenciam a vida e o caráter de seus xarás.

Eneida, por sua vez, estava feliz; embora os “garotos” tivessem escolhido modestas atividades laboriosas, as exercitavam com honestidade…

– “Honestidade?” – perguntou-se ao lembrar que, excetuando Osvaldo Cruz, como porteiro de um hospital, Jorge Amado e Roberto Carlos escolheram o caminho da ilegalidade: apontador do jogo do bicho e vendedor de CDs piratas.

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