terça-feira, 27 de outubro de 2009

Fotografia social (conto)

A idade avançada e a aposentadoria afastaram-me do convívio dos colegas de trabalho. Levaram-me a dias solitários e tristes. Recolhi-me à rotina doméstica, ao lado da mulher, mergulhado em lembranças distantes, nem sempre felizes.

Depois de algum tempo, refugiei-me na casa de uma filha, aborrecido por familiares insatisfeitos com a minha presença.

O neto e o genro me consideram inválido.

“Velho chato” – diz o garoto, revoltado com minhas reclamações; “não é assim, seu Leandro” – ensina o genro, que se julga mais inteligente; “aí não, papai. Oh, meu Deus!” – retruca a filha, após tomar-me das mãos um objeto que eu mudara de lugar.

A aposentadoria é para o velho prêmio e castigo.

Principalmente castigo.

Por residir com parentes, estou sujeito a constrangimentos que quase sempre magoam. Cansado de tudo, tomei uma decisão: diariamente, depois do desjejum, visto o velho casaco de lã, ponho a boina recebida de presente no último Natal e vou à cidade, de ônibus.

Tenho direito ao passe livre, em virtude da idade avançada.

Agradeço a Deus pela saúde. Do contrário, seria obrigado a interromper esse hábito de grande importância para mim. Afinal, foi assim que me livrei da solidão e evitei os aborrecimentos e as irritações, ao ver as coisas em casa mal conduzidas, realizadas com desleixo, com má vontade. O desperdício de dinheiro era o mais incômodo. Ninguém ouvia a opinião, os conselhos ou as observações que a experiência dos anos me concedeu.

Minha mulher é uma santa criatura. De nada reclama e ainda dá razão aos outros membros da família. Eu, sim, sou o desajustado, o problema. Deixei de sê-lo, portanto, num dia de insuportável convivência. A partir daí, adotei a decisão de sair à rua todos os dias.

Ao entrar no ônibus, cumprimento o motorista, conhecido de longa data. O condutor tudo faz para evitar que eu use o veículo do patrão, cuja linha fora obtida por regime de permissão, graças a favores políticos. Não me incomodo com o seu desprezo por mim. Preocupo-me, sim, com minha segurança, ameaçada quando ele resolve partir antes de eu adentrar completamente à viatura. Ao invés de repreendê-lo, esboço um sorriso, acompanhado de sonoro “bom dia!”.

O motorista não responde.

Sempre fica irritado com minha presença.

E com a de outros velhos que, como eu, não pagam a passagem.

Dentro do ônibus viaja gente de todo tipo. Honrados trabalhadores misturam-se aos marginais que circulam livremente pela cidade. A maioria veste calças jeans e blusas de malha com propaganda de empresas ou de candidato a deputado em eleições passadas. A mochila levada a tiracolo serve para guardar apetrechos de trabalho; no caso de meliantes, esconde a arma que poderia tirar a vida de qualquer de nós que ali somos transportados, sem nenhum conforto e quase nenhuma consideração.

Dificilmente, viajo sentado. Os passageiros não reconhecem o direito do idoso, desrespeitado até pelo agente público. Ruim é quando estou sentado em uma poltrona, com o assento prestes a rasgar, as molas do estofado ameaçando-me beliscar as nádegas ou o vizinho do lado fica a palitar os dentes, a mascar chiclete ou a brincar com a prótese dentária, fazendo-a entrar e sair da boca, num ritual nojento e deseducado.

Nessas viagens diárias, já presenciei muitos acontecimentos deprimentes, inusitados e prosaicos. As discussões são raras e quando acontecem é porque o passageiro que viaja em pé descuida-se e deixa suas “partes” tocar as da mulher acompanhada do marido.

Viajando sozinha, dificilmente reclama.

O ônibus pára e eu desço na praça principal da cidade, local de grande movimento. A aglomeração humana é intensa, com pessoas transitando de um lado para outro, algumas apressadas, outras esquecidas do tempo, descontraídas e displicentes.

Os banquinhos são dispostos em diversos lugares, protegidos do sol pelas árvores que oferecem sombras generosas como abrigo, porém sujos do esterco dos pombos que infestam a região.

Costumeiramente, procuro um papel dos muitos que poluem o logradouro e esvoaçam ao vento, a fim de limpar a sujeira dos columbídeos. Sentado, cruzo as pernas e leio pedaços de folha de velhos jornais.

Já me aconteceu de sujar as mãos com o cocô dos pombos, esquecido de que aquele pedacinho de papel servira para limpá-lo minutos antes.

É assim que vejo o tempo passar.

Ocupo as horas com os acontecimentos do dia, protagonizados por pessoas de caráter restritivo ou extremamente condenável.

Leio bobagens divulgadas pela imprensa. Certa vez, li o seguinte:

“Linda garota, seios fartos, lábios voluptuosos, pernas longas e torneadas, bumbum arrebitado, dezoito aninhos, ‘primeira rodagem’ (assim mesmo, entre aspas, para chamar atenção). Serviço completo”. (desse jeito, grifado)… Outro anuncia: “rapaz loiro, olhos azuis, musculoso, b… d…, atende ambos os sexos…”

Aquele pedaço de jornal pareceu-me tão sujo quanto os excrementos dos columbídeos que eu acabara de limpar.

O mundo é nojento, ressalvadas as exceções. A prostituição juvenil espalha-se como praga. Os jovens optam pela libertinagem, pela luxúria, incentivados pelos programas de televisão e pelo prazer desregrado, que poderá contagiá-los por doenças incuráveis, como a AIDS, e até levá-los à morte.

“Dezoito aninhos”!

Fiquei com aquela expressão gravada na mente e lamentei o destino da jovem ninfeta, ainda quase criança.

O banquinho em que costumo sentar é sempre o mesmo, construído de concreto e de cor escurecida pela fuligem do asfalto. Embora de estrutura maciça, revela pequena depressão, decorrente do peso dos corpos obesos. O meu, particularmente, é bastante pesado.

A obesidade parece ser própria dos velhos. Minha família, infelizmente, tem essa característica genética.

Sentado há alguns minutos, fui procurado por uma moça, cuja idade não ultrapassava os vinte anos. A garota trazia uma criança de alguns meses escanchada na cintura, à moda dos índios. Era jovem e não se apresentava suja e maltrapilha como a maioria dos pedintes.

Confidenciou-me alguns particulares de sua vida. Era nordestina do Piauí. Segundo ela, há quase dois dias nada comia de substancial e por isso me pedia uma refeição qualquer. O filho comera biscoitos e restos de sanduíches ofertados por algumas pessoas.

Respondi àquela senhora que minha capacidade financeira era de pouca valia, pois, como aposentado, recebia “proventos-de-fome”.

Ao pronunciar o nome dado à minha modesta aposentadoria, lembrei-me do programa Fome Zero, que o governo alardeia como principal realização, sem conseguir implementá-lo de forma adequada.

Incrédula, a moça me fez uma proposta:

– Por dez reais farei sexo com o senhor. Não se preocupe que saberei animá-lo, se precisar. Eu necessito desse dinheiro para completar a compra de remédio para meu filho. Por favor, ajude-me!

– Moça, disse-lhe eu, não se prostitua por tão pouco. Nem mesmo por muito. Mantenha a dignidade. Você poderá destruir sua vida pelo vírus da AIDS ou, no mínimo, resultará contaminada por outras doenças sexualmente transmissíveis. Não faça isso!

– O senhor parece diferente de outros com quem conversei a esse respeito. Eles é que me propõem essa alternativa vergonhosa. A necessidade obrigou-me. Acredite!

Ao final, aquela senhora chorava abraçada ao filho. Abri a carteira e entreguei-lhe a última cédula que possuía. Era o saldo de minha aposentadoria, recebida há poucos dias.

Naquela hora, renunciei ao almoço.

Mãe e filho foram embora. Segui-os com a vista, até vê-los desaparecerem por entre os transeuntes. Esperava não encontrá-la mais a mendigar em troca de favores sexuais.

Torci para aqueles dez reais serem aplicados na compra do medicamento.

Horas depois, já no início da tarde, um cidadão foi agredido por um trombadinha. O meliante roubou-lhe a carteira. O homem não resistiu, dominado pela surpresa.
Nenhum policial socorreu a vítima, embora dois deles patrulhassem as ruas. Conversavam animadamente no instante da agressão. Possivelmente, sobre as constantes derrotas do Flamengo.

Chegou a hora de voltar para casa.

Antes, porém, assisti a prisão de bandidos envolvidos em assalto frustrado; presenciei o furto de um automóvel estacionado em um canteiro de flores; ouvi o sermão de um pastor evangélico pregando sobre a libertação do pecado.

Os transeuntes não davam atenção à Palavra.

E vi mais:

Sob as marquises, mendigos e meninos de rua acomodavam-se para dormir nas próximas horas.

Os mendigos bebiam pinga.

Os garotos cheiravam cola.

Transpus o portão da casa da minha filha no início da noite.

Estava faminto e cansado.

O ônibus que me transportou, somente não foi assaltado graças à firme disposição de um policial à paisana. O militar abordou os marginais e abortou-lhes a ação criminosa.

Amanhã retornarei àquele logradouro.

Não sei se voltarei de lá em condições de narrar novos episódios da violência urbana que nos assola de maneira progressiva e assustadora.

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