sábado, 31 de outubro de 2009

O taxista (conto)

O táxi corria pelo asfalto cheio de buracos e depressões, a uma velocidade de cinqüenta quilômetros por hora. Vicente, o motorista, transitava pelas imediações do aeroporto quando foi abordado por um passageiro:

– Táxi! Táxi!

O veículo parou. Um elegante senhor abriu a porta traseira direita e entrou. Sentado junto à porta, colocou a pasta tipo executivo sobre os joelhos, protegida pelas duas mãos. Olhou para os lados, talvez preocupado com alguma presença indesejável. Então, ordenou ao taxista:

– Rua das Camélias, bairro da Independência, por favor!

– Pois não, senhor! – respondeu Vicente, depois de olhar para trás e verificar se o passageiro estava bem acomodado. Voltou-se para frente e pôs o carro em movimento.

O táxi seguia o percurso indicado. Vez ou outra, o motorista olhava pelo retrovisor e via aquele cavalheiro sentado, com ares de muita apreensão. A cada instante olhava para os lados, consultava o relógio, inquietava-se. As mãos fortes seguravam cuidadosamente a pasta que transportava.

Disposto a iniciar o costumeiro diálogo com os passageiros, às vezes para por fim à monotonia ou simplesmente por curiosidade, Vicente perguntou:

– Vem de São Paulo?

– Sim.

Fez-se um pequeno silêncio, interrompido pela voz do taxista que insistia em dialogar:

– Quer usar o celular? É cortesia da “casa” – disse, ao erguer a mão direita e exibir o telefone enquanto novamente olhava pelo espelho retrovisor. - O senhor parece tenso. Algum problema?

– Não. É que estou ansioso para chegar. Tenho muitas coisas a fazer. À noite, darei uma festa para recepcionar um empresário paulista. Um amigo, com quem mantenho relações comerciais.

Algum tempo depois, o silêncio foi novamente quebrado, dessa vez pelo passageiro que anunciou:

– Finalmente, chegamos! Pode parar. É essa casa da esquina – disse, com o dedo indicador da mão direita apontado para uma belíssima mansão de dois pavimentos. Em seguida, retirou da carteira uma cédula de cinquenta reais, com a qual pagou ao taxista.

Vicente parou o táxi em frente da casa, um palacete construído com esmero, bem ajardinado e alegre. Parecia uma dessas construções caríssimas, exibidas em filmes de luxo.

– Trinta reais! – anunciou o motorista, ao zerar o taxímetro. – Como é mesmo o seu nome, doutor?

– Pereira. José Pereira. – Muito obrigado. Esqueça o troco! – respondeu ao sair.

O passageiro retirou-se rapidamente. Segurava a pasta em baixo do braço esquerdo, apoiada pela mão direita. Renovava, assim, o excesso de cuidado com o objeto que conduzia.

***

À noite, por volta de vinte e uma horas, a festa foi iniciada na casa do doutor Pereira. Havia muita gente; a maioria políticos e empresários. Carros de luxo, homens elegantes e senhoras bonitas davam o tom alegre do ambiente. Doutor Pereira e sua mulher, dona Silene, recebiam os convidados efusivamente.

O banquete começou ao som de muita música. Os cumprimentos entre os convidados, as conversas de “pé-de-orelha” e os beijinhos trocados entre os participantes confirmavam a hipocrisia peculiar aos políticos.

No grande salão, ricamente ornamentado, eram servidos os mais variados drinques: bom uísque e excelentes vinhos. Canapés deliciosamente recheados, caviar, salmão e outras finas iguarias completavam a exuberância do acontecimento.

O grande relógio fixado à parede da sala, onde se viam magníficas obras de Picasso, Van Gogh, Rembrandt e bom número de peças de arte, de autoria de renomados escultores, soou estridentemente.

Eram vinte e três horas.

O jantar seria servido em seguida.

Os convidados conversavam descontraidamente, até serem chamados pela anfitriã para tomarem assento às mesas. Nesse instante, determinado cavalheiro, de nome Enéas Ricaço, passou mal e caiu ao chão, desfalecido. O conteúdo do copo que trazia à mão sujou o rico tapete Persa que ornamentava a sala.

Grande alvoroço tomou conta do recinto.

Alguns médicos acorreram de imediato, na tentativa de assistir à vítima.

– Morto! – revelou o doutor Saudelino, que tomara o pulso do senhor Enéas e consultara-lhe a carótida. – Definitivamente morto! – disse o médico aos circunstantes.

Enéas Ricaço era conhecido empresário de São Paulo; explorava o ramo da construção civil. Viera à cidade participar de negociações com o governo local. Tratava-se de licitação para erguer uma majestosa ponte sobre o Lago Sulino, obra que aproximaria distâncias, valorizaria imóveis da região e traria, sem dúvida, grandes dividendos políticos ao prefeito da cidade.

– O que terá acontecido, meu Deus? – gritou o doutor Pereira, desconsolado.

O morto estava estendido no chão, os olhos abertos, como se estivessem a fitar o teto ricamente iluminado por lustres de cristais importados da Europa.

– Enfarte fulminante? – perguntou outro empresário, sem obter resposta.

– Chamem uma ambulância! – gritou alguém, suspendendo o defunto pelos ombros.

A ambulância chegou e o corpo do doutor Enéas foi removido para um hospital de luxo. Embora morto em circunstâncias desconhecidas, não iria para o IML. Sua mulher não permitiu que o marido fosse aberto como um frango, a exemplo do que acontecera às vítimas do massacre do Carandiru.

O deputado Louis Américo Flary, presente ao acontecimento, sentiu-se constrangido com a citação da senhora; pigarreou por duas vezes e bebeu, de um só gole, todo o conteúdo do copo que trazia à mão.

A polícia foi chamada com certa demora.

O corpo já havia sido removido e pouco restava a fazer. A festa acabou e as especulações recomeçaram.

– Acho que o Ricaço foi envenenado!

– Como assim? Por que você desconfia?

– Não sei. Essas concorrências… muito dinheiro… resultado conhecido por antecipação… – respon-deu, insinuativamente, um dos convidados.

– Quem sabe, um concorrente alijado do processo licitatório? – insistiu outro, sem encontrar apoio aos seus comentários.

– Não gostaria de falar mais sobre o assunto – finalizou certo construtor, disposto a encerrar as especulações.

Às três horas da manhã, depois das diligências policiais de praxe, em que foram interpelados poucas autoridades presentes e todos os serviçais – garçons principalmente –, não restava mais ninguém na casa, exceto os respectivos moradores.

A residência, horas antes alegre e festiva, parecia uma capela fúnebre, com o ambiente pesado, triste, quase escuro, assustador, fantasmagórico.

Os médicos atestaram, posteriormente, que Enéas Ricaço morrera de infarto.

Simples, assim.

***

A licitação para construção da terceira ponte realizou-se no dia seguinte, mesmo sem a presença do doutor Enéas, o que seria impossível. Estava morto. Foi representado por doutor Pereira, executivo maior da empresa.

Divulgado o resultado, veio a confirmação: a Organização Ricaço saíra vencedora. Iria executar a construção pelos setenta milhões de reais orçados, certa de chegar ao dobro ou até mais com os reajustes posteriores. Era o que sempre acontecia nas negociações entre governo e empreiteiras.

Vicente, o taxista, passava em frente ao palácio da prefeitura, onde se realizou a licitação, quando ouviu uma voz.

– Táxi! Táxi!

O motorista parou o veículo. Nele, entrou um senhor de cabelos grisalhos, com uma pasta executiva que fez Vicente lembrar a do dia anterior, conduzida por doutor Pereira. Ao entrar no carro, o passageiro colocou-a no banco traseiro em que se sentara. O gesto brusco fez a maleta abrir-se inesperadamente, revelando o conteúdo de milhares de reais. O passageiro apressou-se em fechá-la, sob o olhar atento do motorista pelo retrovisor.

“Aí tem!” – pensou Vicente, certo de que, brevemente, ouviria falar de mais uma licitação fraudada.

Uma prática sem fim.

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