quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Revivendo o passado (crônica)

Segundo a família, fui um garoto esperto, estudioso, inteligente e observador. Verdade? Não sei. Como afirmar se os parentes não exageraram em suas observações? Particularmente, já enalteci a qualidade dos filhos, superestimei-lhes os feitos e minimizei-lhes os erros.

Os netos?

Como são inteligentes!

Fui o segundo colocado no Exame de Admissão ao Ginásio, espécie de vestibular da época. O exame foi realizado no Colégio Salesiano Padre Rolim, na cidade de Cajazeiras, educandário que contou em seu corpo discente personalidades como o padre Cícero Romão Batista – “meu padim Pade Ciço” – e o primeiro cardeal da Igreja Católica no estado da Paraíba, Dom Arcoverde.

Sempre gostei de ler. Depois do trabalho e das horas ocupadas na escola, lia bons livros da literatura doméstica. Conheci obras de José de Alencar, Machado de Assis, Jorge Amado e José Lins do Rego, este, um conterrâneo de quem me orgulho, como o faço, por justiça e reconhecimento, referindo-me a outro ilustre patrício, José Américo de Almeida, renomado escritor de sua época.

Encarei o futuro com olhos progressistas.

Aos treze anos, trabalhava para ajudar a família necessitada, o que me serviu para aperfeiçoar as aptidões latentes. Meu primeiro emprego foi em loja especializada em peças e acessórios para automóveis. Pertencia a um tio, de saudosa memória, um dos poucos da família que se projetou no cenário empresarial do nosso estado, a Paraíba. Os demais parentes de quem herdei o bom caráter, a disciplina e a vontade para o trabalho eram pobres, porém honrados.

Não passei muito tempo atrás do balcão.

Logo me senti cansado de entregar mercadorias transportadas na cabeça. Recebia pelo serviço uns poucos trocados, com os quais tomava minha gelada de coco com pão doce, após disputá-lo com as moscas que infestavam o fiteiro do Galego, comerciante de parcos recursos e de obstinada disposição para o trabalho, mas que não logrou êxito financeiro na vida.

Jamais vi a luta do Galego como desestímulo. “Se ele não venceu os obstáculos, eu os venceria”, pensava, nos arroubos da juventude. Era pobre tanto quanto ele, mas me dispus a trilhar caminhos mais ousados.

Larguei a atividade de entregador de mercadorias e fui trabalhar em um escritório. Passei a ser Office boy. Nome pomposo: Office boy!

Já adolescente, entre os quinze e os dezesseis anos, vaidoso, camisa de mangas dobradas para ressaltar os músculos (e que músculos!), cabelos lustrosos à custa de muita brilhantina, não mais temia ser visto por algum colega de escola, carregando caixa na cabeça. Se me vissem, ver-me-iam vestido mais apuradamente, portando alguns envelopes com destino à agência dos Correios.

A quem me perguntasse onde trabalhava, enchia o peito de orgulho e dizia: “trabalho na Mesbla, empresa estabelecida em Recife, na Rua da Palma, e no Rio de Janeiro, na Rua do Passeio, entre outras importantes cidades do Brasil. Uma multinacional, originalmente pertencente aos franceses Mestre & Blagè, até tornar-se Mesbla em sua versão brasileira”.

Falava assim, com entusiasmo, sem arrogância, mas feliz com a minha ascensão funcional.

Em meu novo trabalho, após varrer o pequeno escritório de vendas, arrumava as mesas e atualizava as listas de preços; depois, sentava-me à máquina de escrever e iniciava o meu treinamento.

Não aspirava ser um “dedógrafo” qualquer. Queria ser datilógrafo, bater as teclas com os dez dedos, conforme desenho de uma mão em que foram grafadas as letras que cada dedo deveria pressionar. Tudo certinho.

Com o passar do tempo, tornei-me excelente datilógrafo. Assim, deixei de ser Office boy. Ambicioso, no bom sentido, desejava mais. Gostaria de ser como o colega Luiz, encarregado da correspondência oficial da empresa. Era ele que escrevia as cartas endereçadas à filial de Recife e eu as datilografava.

Também almejava ser igualzinho ao meu chefe Eládio, que costumava trajar ternos de linho diagonal L-120. Eu iria vencer! Um dia, vestiria ternos iguais àqueles. O cérebro gravava essas mensagens, enquanto os dedos batiam impiedosamente na velha máquina Underood, cada vez mais velozes.

Depois de estudar gramática portuguesa e de ler cartas em estilo comercial, em um livro que me custou dias do salário, senti-me feliz ao redigir e datilografar a missiva que solicitava da filial a minha promoção a “datilógrafo-correspondente”.
Naquele momento, dava meu segundo passo rumo a uma posição mais destacada. Tornara-me igual ao Luiz, que deixara a empresa para assumir um cargo no Banco do Brasil. Tempos depois, eu faria o mesmo.

Entregador de pacotes.

Office boy.

Datilógrafo.

Datilógrafo-correspondente.

Depois, chefe.

Tornei-me chefe. Como? Troquei os pacotes pela vassoura e esta pela máquina de escrever e pela redação da correspondência oficial da empresa. Substituído por outro jovem, que passou a ser o novo boy, tornei-me seu chefe, já que passei a ser o terceiro na hierarquia funcional, constituída de quatro pessoas. Ele era o funcionário mais novo; o último, inclusive na escala salarial. Ainda hoje, quando me vê, diz para os nossos circunstantes: “Este já foi meu chefe”, e conta-lhes a história da minha progressão funcional.

Aquele ex-colega começou varrendo o chão; anos depois, trocou a vassoura por uma caneta com a qual assinaria importantes documentos como representante de um dos Poderes de nossa Nação.

Esse meu “ex-subordinado” exerceu o cargo de procurador da República, em Brasília. É um homem de grande saber jurídico, vitorioso após a infância órfã e pobre como a minha, vivida na cidade onde estudamos no mesmo colégio.

Ele, de quem não citarei o nome sem sua permissão, também não fez como o Galego, que continuou vendendo sua gelada de coco.

Assim, como funcionário de Mesbla desde os quatorze anos, fui dispensado aos dezessete, quase próximo a completar dezoito. Deixei o emprego para iniciar nova etapa de minha vida. Por ser bom datilógrafo, reconhecido em um mercado de poucos concorrentes, fui convidado para trabalhar no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, na cidade de Orós, estado do Ceará.

Ali estava sendo reiniciada a construção de uma monumental obra hidrográfica, colossal monumento que viria armazenar, três anos mais tarde, dois bilhões de metros cúbicos de água. Seria a redenção do Nordeste, nas palavras de políticos capitaneados por Juscelino Kubitschek, continuador da obra iniciada no governo de Epitácio Pessoa.

O desafio de barrar o maior “rio seco” do mundo, o Jaguaribe, também me contagiou. Contratado co-mo datilógrafo, após ter sido autorizado por minha mãe, que me nomeara um tutor com mandato a ser exercido em plagas cearenses, voltei a usar a máquina de escrever como ferramenta de trabalho, atividade praticada durante dez horas diárias, por mais de três anos.

O Clidenor, que me fizera o convite para trabalhar no DNOCS, um garoto como eu, que ansiava por melhores condições financeiras, fazia dupla comigo nas Olivettis que por pouco resistiram aos nossos dedos ágeis e certeiros, pressionando suas teclas de onde saíram, mensalmente, as folhas de pagamento de mais de dois mil operários.

Em Orós, como empregado do DNOCS, não tive nenhuma ascensão funcional; apenas as finanças melhoraram, graças ao salário bastante generoso e à carga de trabalho excessivamente pesada.

Naquela repartição, iniciei e terminei minha carreira como datilógrafo, experiência que contribuiu para aprovação em concurso do Banco do Brasil, quando bati o texto uma vez e meia durante o tempo concedido para testar essa habilidade.

Cheguei aonde chegou o Luiz, meu antigo colega da Mesbla. Trabalhei nessa instituição por onze anos, antes de trocá-la pela atividade privada, como profissional na área de contabilidade.

Formado em ciências contábeis, deixei o Banco do Brasil para ser auditor independente. E o fui por muito tempo, inclusive quando exercia a profissão paralelamente como auditor concursado de empresa pública federal, até à aposentadoria hoje desfrutada com certo conforto.

O tempo passou, como não poderia ser diferente. O menino pobre, órfão de pai aos seis anos de idade, que entregou pacotes transportados na cabeça; que varreu o chão e transmitiu recados; que usou a máquina de escrever como poucos o fizeram; que deixou de ser Barnabé e funcionário do Banco do Brasil; que foi auditor independente e de empresa pública, agora está aposentado e em condições de dizer, como o fez Napoleão Bonaparte, do alto de uma Pirâmide, no Egito, parodiando Júlio César: “fui, vi e venci”.

Entregador de pacotes.

Office boy.

Datilógrafo.

Datilógrafo-correspondente.

Barnabé.

Funcionário do Banco do Brasil.

Auditor independente.

Auditor de empresa pública federal.

Aposentado.

E agora?

Resta-me aguardar a morte chegar!

Enquanto ela não vem, dedico-me à literatura; leio e escrevo, talvez para confirmar que a vida é uma eterna mutação.

O mundo dá muitas voltas, já disse alguém de experimentado saber.

Há sempre o retorno ao ponto de partida.

Não é assim, quando envelhecemos e voltamos a praticar atitudes senis, assemelhadas às de uma criança? Pois bem, termino exatamente como comecei: escrevendo. Apenas troquei de teclado – o da máquina de escrever pelo do computador.

A vida é assim.

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